Maria Rita Kehl

Opinião

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Três meses depois…

Voltamos a ter um governo para todos

A diversidade brasileira sobe a rampa – Imagem: Ricardo Stuckert/PR
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Antes mesmo de o presidente Lula tomar posse, Bolsonaro escafedeu-se. Foi no dia 30 de dezembro o primeiro benefício do novo governo eleito: o País respira melhor na ausência do ex-presidente. Só que no dia 8 de janeiro ficamos sabendo que, mesmo com o Bozo fugido, o bolsonarismo continua vivo em sua forma mais primária: o vandalismo. Foi o dia da invasão bárbara no Palácio do Planalto. Como disse o governador de Brasília, Ibaneis Rocha: o Palácio do Planalto dispunha de um batalhão para defendê-lo, mas houve um “relaxamento geral”. Nem a Força Nacional entrou em ação. Se tal descaso não é sintoma de bolsonarismo, não sei o que é.

Preso desde o dia 14 de janeiro, o ex-ministro da Justiça de Bolsonaro ­Anderson Torres admitiu que houve “falha grave” na proteção do Palácio no dia 8. Por acaso, ou não, o projeto de Torres era remover o acampamento dos golpistas no dia 10. Alguém avisou os vândalos para se adiantarem?

Poderíamos dizer: assim começou o governo Lula. Só que não. O vandalismo não foi iniciativa do novo governo, mas a aplicação justa e rigorosa da lei, sim. Nenhum culpado ficará impune, nenhum inocente será detido sem provas. Isso se chama justiça. Assim se faz numa democracia.

A diferença que o Brasil sentiu nos primeiros dias do governo Lula começou na posse. Nem mesmo ele, nas duas vezes anteriores em que foi eleito, tinha planejado uma posse tão bonita quanto a do primeiro dia de 2023. A pergunta sobre quem haveria de passar a faixa ao novo presidente foi respondida com o cortejo de representantes de todas as etnias e tipos humanos que compõem a sociedade brasileira. Negros, indígenas, quilombolas, uma criança, um cadeirante… o Brasil entregou a faixa ao seu novo – e já tão consagrado – presidente, a mostrar na prática, desde o primeiro dia, seu projeto de inclusão.

Conheci o ainda-não-presidente Lula em 1976. Era o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e eu uma “jornalista de calcanhar sujo” (apud Nelson Rodrigues) que, depois de assistir a um tremendo comício dele, conseguiu entrevistá-lo para o jornal Movimento, um dos pequenos jornais de oposição à ditadura que surgiram naquele período. A entrevista deve estar nos arquivos online do extinto Movimento, se é que existem (na época o que não existia era a internet).

O Brasil respira melhor, principalmente sem a presença de Bolsonaro

Outro momento importante foi quando, depois de três tentativas de se tornar presidente, Luiz Inácio Lula da Silva divulgou a “Carta ao Povo Brasileiro”, onde prometia não mexer nos juros dos bancos. Boa parte da esquerda revoltou-se. Lula, o negociador, nos convocou – eu sempre na rabeira da fila, com muita honra – para explicar as razões de sua negociação. Ele tinha um projeto simples e revolucionário para o Brasil, que mantém até hoje: “Que cada brasileiro tenha direito a café da manhã, almoço e jantar”. Foi o que o levou a criar o Bolsa Família, cujo recebimento estava condicionado a que as crianças estivessem na escola – assim se diminuía, também, a prática criminosa do trabalho infantil.

Depois de dois mandatos revolucionários, diante do atraso e do patriarcalismo brasileiro, – me desculpe, presidente, pela palavra “revolucionário”, com a qual você nunca se identificou –, Lula ainda conseguiu eleger e reeleger sua sucessora: uma ex-presa política que havia sido torturada na prisão e, por conta disso, foi a primeira chefe de Estado brasileira desde o fim da ditadura que se empenhou junto ao Congresso para criar uma Comissão Nacional da Verdade. Não podemos nos queixar de que o nosso trabalho não tenha sido bem divulgado. Por duas vezes, ocupamos até o noticiário do Jornal Nacional. Mas a recepção à CNV não foi unanimidade nacional. Criou-se, à época, a famigerada “teoria dos dois lados”. Pessoas nos paravam nas ruas para perguntar se não iríamos investigar o “lado dos terroristas”. Não adiantava explicar que os “terroristas” defendiam a volta da democracia. A CNV incomodou os incautos. Ninguém ouvia nosso argumento. Além disso…

Além disso, durante a reunião da Câmara que aprovou o impeachment de ­Dilma Rousseff, um deputado do “baixo clero” foi elogiar o livro do mais cruel dentre os torturadores: Carlos Alberto Brilhante Ustra. Tal deputado veio a se eleger presidente em 2018. Sabemos o que o País passou, então – se eu começar a enumerar as maldades e irresponsabilidades de Bolsonaro este artigo não terá fim.  Mas vale comemorar que foi o primeiro presidente, desde o fim da ditadura, que, com toda a máquina do Estado a seu dispor, não conseguiu se reeleger. Bem feito.

O primeiro “efeito Lula” foi o mesmo de seus governos anteriores: pacificou o País. Não governou contra seus inimigos, nem a favor de seus apoiadores. O País voltou a ter um governo para todos os brasileiros. Respira-se um clima melhor. Depois do 8 de janeiro, com Bolsonaro na Flórida traindo os vândalos que lutaram por ele, o Brasil começa a se pacificar. Confio que, apesar da pequena margem de votos a seu favor, Lula consiga retomar o que sempre fez: governar para e comunicar-se com todos os brasileiros.

Já começou. O novo Bolsa Família de 600 reais inclui um adicional de 150 por criança. O trabalho escravo, que desde o século XVI nunca deveria ter acontecido, está sendo erradicado. O programa “Mais Médicos”, bem recebido pela população pobre e execrado pelos ressentidos (inclusive aqueles médicos que jamais se dispuseram a trabalhar onde os cubanos aceitavam ir) foi relançado. E, de forma geral, grande parte da população brasileira voltou a sorrir. “Não acredito em pessoas, acredito em dispositivos”, disse certa vez o psicanalista Jacques Lacan. Bolsonaro muniu-se de dispositivos de ódio. “Só não te estupro porque você é muito feia”, dirigiu-se à deputada Maria do Rosário, por uma divergência qualquer. Referiu-se a quilombolas como se fossem gado ao comentar que deveriam ser pesados em arrobas.

Penso que o mal praticado pelo ex-presidente não se resume ao seu mau governo, nem às quebras de decoro mencionadas nos exemplos acima. Dispositivos são organizadores do laço social. A democracia é um deles. A lei é outro. O pressuposto da gentileza, ou do respeito, acima da brutalidade e do desrespeito, é um dispositivo civilizador. Bolsonaro não conseguiu destruir todos eles – a democracia brasileira é sólida, mesmo tocando pouco no elemento de nossa brutal desigualdade. Mas desmoralizou a todos, o quanto pôde, do jeito que pôde. Isso implica um trabalho a mais para o novo presidente. Não bastam leis e ações políticas para diminuir a desigualdade, o racismo, a violência. É preciso pacificar os discursos. Sei que Lula é capaz disso. Nunca ouvimos dele um “discurso de ódio”. Mas, depois do desmonte da civilidade que o Brasil sofreu nos últimos quatro anos, Lula e sua grande equipe terão algum trabalho para devolver a paz não só aos seus apoiadores, mas à sociedade brasileira como um todo.

Bom trabalho, presidente. •


*Psicanalista, jornalista, ensaísta, poetisa, cronista e crítica literária.

Publicado na edição n° 1254 de CartaCapital, em 12 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Enquanto o mundo gira’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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