Aldo Fornazieri

Doutor em Ciência Política pela USP. Foi Diretor Acadêmico da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), onde é professor. Autor de 'Liderança e Poder'

Opinião

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Tragédia e indiferença

Os brasileiros se mostraram solidários para com o sofrimento dos gaúchos, mas não se mostraram dispostos a lutar por mudanças que mitiguem o aquecimento global e a crise ambiental

Porto Alegre - Comerciantes retiram entulho e limpam lojas para retomar negócios no centro histórico da cidade - Foto Rafa Neddermeyer/Agência Brasil
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As múltiplas tragédias que atingem o Rio Grande do Sul desencadearam uma imensa onda de solidariedade por todo o País. Instituições públicas, privadas e da sociedade civil, empresas e trabalhadores, empregadores e empregados, militares e civis, lojas e faculdades, hospitais e escolas, pobres e ricos, milhões de brasileiros se mobilizaram para doar e arrecadar doações. Milhares se voluntariaram para socorrer as vítimas e fazer resgates de todo tipo.

Tudo isso constituiu um movimento de natureza moral muito positivo. Os sentimentos de humanidade, de compaixão, de solidariedade foram e têm sido exercidos em grau muito significativo. O desejável é que este movimento continue em relação a essa tragédia e a novos eventos, sejam eles provocados por catástrofes naturais ou derivados das mazelas sociais.

As catástrofes ambientais e socioambientais do nosso tempo têm muitas causas. Em sua imensa maioria derivam das ações humanas no planeta e sobre a natureza. O modo pelo qual os humanos produzem e consomem, o sistema de produção capitalista essencialmente depredador, as formas de organização social e os fins éticos das sociedades e dos indivíduos estão na raiz dessas causas.

A crise ambiental é vista também como uma crise civilizacional. Como crise civilizacional, a crise ambiental é a maior crise da civilização no contexto da existência do Homo sapiens. Isso porque é a maior ameaça à continuidade da existência da humanidade, das espécies e da biodiversidade em consequência da ação humana. Trata-se de uma crise de magnitude global que incide sobre toda a humanidade.

Apesar de todos os riscos que a humanidade e as sociedades correm, apesar de todas as catástrofes ambientais que ocorrem em todas as partes, os governantes, os governados, os grupos econômicos e sociais manifestam uma enorme indiferença para com a crise ambiental. A tragédia do Rio Grande do Sul é um exemplo. Os brasileiros se mostraram solidários para com o sofrimento dos gaúchos, mas não se mostraram dispostos a lutar por mudanças que mitiguem o aquecimento global e a crise ambiental.

Os movimentos sociais, os sindicatos e os partidos estão inertes diante da crise ambiental. Não se mobilizam e não mobilizam. Trata-se de uma letárgica covardia, uma falta de percepção do momento terrível que a humanidade vive. Talvez esperem por soluções dos governos. Mas os governos estão afundados em suas lógicas políticas e eleitorais e estas pouco conversam com a necessidade de enfrentamento da crise ambiental e da criação de resiliência para enfrentar as catástrofes.

O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, questionado se não conhecia os alertas acerca da gravidade do que poderia ocorrer, respondeu que sabia, mas que tinha outras agendas. O governador não é exceção. Ele expressa a regra da conduta dos políticos em geral de todos os partidos. A omissão criminosa dos governantes e dos políticos revela o seu conluio com os interesses desmedidos do capitalismo depredador.

No início de maio, o jornal inglês The Guardian divulgou uma pesquisa com os 380 principais cientistas climáticos do mundo que apontaram as medidas mais eficazes para mitigar os efeitos das mudanças climáticas. As cinco mais importantes, pela ordem, foram as seguintes: 1) escolher políticos que têm propostas ambientais; 2) reduzir os transportes aéreos, já que os aviões são uma das fontes mais poluidoras; 3) comer menos carne, pois a sua produção estimula o desmatamento e consome grande quantidade de recursos naturais como solo, água, grão e emite elevada quantidade de metano; 4) aumentar o ativismo ambiental, pois mudanças dependem muito da pressão da sociedade; 5) reduzir a taxa de natalidade humana.

A omissão e o negacionismo dos políticos, dizem os cientistas, explica a falta de respostas eficazes do Poder Público para reduzir os impactos catastróficos do aquecimento global. Pesquisas de opinião em diversos países mostram que as sociedades estão mais dispostas do que os políticos para adotar medidas mais duras de proteção ambiental. No caso do Brasil, o Congresso tem adotado medidas de desmonte da legislação ambiental.

Aumentar os protestos climáticos dos cidadãos e dos movimentos ambientalistas é a forma mais eficaz para pressionar os políticos e o Poder Público no enfrentamento das mudanças climáticas. Muitos dos próprios cientistas que responderam à pesquisa declararam que eles mesmos participam de mobilizações e protestos. Precisamos ter consciência de que salvar a vida no planeta depende mais de cada um de nós, da própria sociedade mobilizada e exigente, do que dos políticos. •

Publicado na edição n° 1312 de CartaCapital, em 29 de maio de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Tragédia e indiferença’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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