Jamil Chade

Jornalista, correspondente internacional, escritor e integrante do conselho do Instituto Vladimir Herzog

Opinião

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Traficante de estimação?

Trump acusa sem provas Nicolás Maduro e solta o hondurenho Juan Orlando Hernández, condenado por tráfico

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Em fevereiro de 2024, diante de uma Corte norte-americana, os promotores mostraram provas contundentes do envolvimento do ex-presidente hondurenho Juan Orlando Hernández num megaesquema de contrabando de drogas para os EUA. Uma das evidências foi uma gravação na qual o suspeito diz ao traficante Geovanny Fuentes que “juntos eles iriam enfiar as drogas direto no nariz dos gringos”. Fuentes subornou o ex-presidente e deu acesso a seu laboratório de cocaína, estrategicamente localizado perto de um importante porto.

O político foi condenado a 45 anos de prisão nos EUA. Na terça-feira 2, ­Hernández acabou, no entanto, perdoado e libertado por ordem da Casa Branca. O indulto de Donald Trump revela que a ofensiva militar na América Latina e na Venezuela jamais teve o objetivo de frear o fluxo de entorpecentes ou de defender a saúde dos norte-americanos. Não resta mais dúvida de que a “guerra às drogas” tem sido instrumentalizada para objetivos geopolíticos. O caso do hondurenho é a evidência mais explícita de que o governo Trump não está preocupado com o crime organizado, ao contrário.

Presidente de 2014 a janeiro de 2022, Hernández foi amplamente apoiado pelos norte-americanos nos primeiros anos de governo. No período que coincidiu com o primeiro mandato de Trump, o hondurenho alinhou-se às orientações de política externa da Casa Branca. Entre outras medidas, transferiu a embaixada do país em Israel de Tel-Aviv para Jerusalém. Menos de três semanas após deixar o cargo e já sob a administração de Joe Biden nos EUA, foi alvo de um pedido de extradição. O objetivo era transformá-lo em exemplo de como os democratas estavam dispostos a lutar contra a corrupção na região. Naquele momento, o procurador Merrick Garland destacou que o hondurenho comandava um “narcoestado”. “Durante anos, ele trabalhou lado a lado com alguns dos maiores e mais violentos traficantes de drogas de Honduras, para enviar toneladas e mais toneladas de cocaína para cá, para os Estados Unidos”, alegou o promotor David Robles.

Não faltam evidências e provas contra o ex-presidente hondurenho. Seu envolvimento com o crime organizado não era novo. Ao longo da carreira, recebeu subornos cada vez maiores de traficantes. Em 2005, quando concorria ao terceiro mandato no Congresso, Víctor Hugo­ “El Rojo” Díaz Morales teria doado 40 mil dólares à campanha. Quatro anos depois, o valor subiu para 100 mil. Outro traficante confirmou ter distribuído 2 milhões de dólares a diferentes políticos, entre eles Hernández. Quando se candidatou à Presidência, o indultado embolsou 1,6 milhão. Um dos líderes do clã Los ­Cachiros, Devis Leonel ­Rivera ­Maradiaga, afirmou ter repassado 250 mil por meio de sua irmã, Hilda. ­Carlos “El Negro” ­Lobo, que atuava no litoral norte, também teria enviado 250 mil.

Nada disso parece ser um problema para Trump, que acusou a Justiça de tratar o ex-presidente com “muita severidade e injustiça”. Em nome de sua posição de força na América Central e do intuito de consolidar a região como sua zona de influência, o presidente norte-americano não faz questão de esconder a hipocrisia. O perdão e a libertação do hondurenho ocorrem num momento em que o republicano quer garantir que um aliado vença as eleições no país, num claro ato de ingerência.

Ainda assim, a reação nos EUA revelou o grau de profundo mal-estar diante do uso do argumento do crime organizado para justificar um ataque contra a América Latina. O senador Tim Kaine classificou a decisão de Trump de perdoar Hernández de “chocante” e apontou para o ex-presidente como “o líder de uma das maiores organizações criminosas que já foram condenados em tribunais americanos”. Para ele, o presidente não está preocupado com as drogas. O deputado do Texas Joaquin Castro disse que Hernández era responsável pela morte de inúmeros cidadãos norte-americanos. “Não me digam que ­Donald Trump está matando pessoas em barcos no Caribe para acabar com o tráfico de drogas.” A deputada da Califórnia Norma Torres­ não escondia sua indignação. “Passei anos lutando contra a corrupção na América Latina”, disse. “Hernández comandava um império criminoso apoiado por um cartel que traficava mais de 400 toneladas de cocaína para os EUA, usava seu cargo para desviar dinheiro dos contribuintes norte-americanos e comprava poder político com dinheiro do narcotráfico”, completou.

Sejamos claros: não existe contradição alguma em relação à postura de Trump na Venezuela e em Honduras. Em ambos os casos, há apenas um princípio que norteia a Casa Branca, o esforço para redesenhar a ordem mundial, a partir do seu quintal.

Nunca foi sobre o narcotráfico.  •

Publicado na edição n° 1391 de CartaCapital, em 10 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Traficante de estimação?’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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