Riad Younes

riadyounes@cartacapital.com.br

Médico, diretor do Centro de Oncologia do Hospital Alemão Oswaldo Cruz e professor da Faculdade de Medicina da USP.

Opinião

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Toxicidade financeira

O desespero e a sensação de urgência levam os pacientes a comprometer parte importante de suas rendas no tratamento do câncer

Toxicidade financeira
Toxicidade financeira
O câncer se origina em alterações do DNA das células, as chamadas mutações.
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Ter câncer, ou até a perspectiva de um câncer, já seriam motivos suficientes para stress, dúvidas e ansiedade em qualquer paciente e seus familiares.

As incertezas quanto ao diagnóstico, ao estágio e à extensão da doença; à possibilidade de tratamento curativo ou controle eficiente; e à evolução e às chances de viver, bem ou mal, por meses ou anos após o diagnóstico, tiram o sono de todos os envolvidos.

A preocupação se concentra, na maior parte do tempo, no tipo de tratamento, em seus efeitos colaterais e nas complicações possíveis, e nas chances de resolver o problema por completo. Infelizmente, as dúvidas não param por aí.

À medida que o manejo dos pacientes avança, aparecem efeitos colaterais que não atingem o corpo diretamente: as toxicidades financeiras.

Vários estudos mostram que, em países em desenvolvimento como o Brasil, pacientes com câncer, e/ou seus familiares, chegam a gastar entre 20% (os mais ricos) a 80% (os mais pobres) de seus ganhos mensais nos cuidados médicos e paramédicos.

Mas, diria você, o cuidado médico de doenças malignas no Brasil não é coberto pelo SUS ou por seguros privados de saúde? De certa forma sim, mas o custo financeiro cresce rapidamente: somente na fase do diagnóstico, estima-se que os pacientes gastem do bolso, sejam eles atendidos pelo SUS ou por convênios, entre 300 reais e 3 mil, respectivamente.

Como? Primeiro, os pacientes com a dúvida do diagnóstico, recorrem a sistema médico privado para “acelerar e confirmar” a identificação do eventual câncer, pagando transporte, consultas ou exames específicos que geralmente demoram – tanto no SUS quanto nos convênios.

O desespero e a sensação de urgência – geralmente exagerados – fazem os pacientes gastarem mais. Feito o diagnóstico, a maioria gostaria de iniciar o mais rápido possível o tratamento apropriado. Novamente, SUS e convênios não compartilham a pressa e a ansiedade dos doentes. Surgem, assim, mais gastos para iniciar logo o tratamento, esperando liberação e autorização dos sistemas de saúde público e privado.

Mesmo quando autorizados e cobertos, os pacientes quase sempre arcam com algumas drogas anticâncer, além da maioria dos medicamentos e dos tratamentos auxiliares: compra de remédios para controle de sintomas (dor, náusea, diarreia, fisioterapia etc.), transporte para e de locais de consultas e de terapia, além de alojamento quando o cuidado está disponível longe de domicílio.

A perda de dias de trabalho e a baixa produtividade decorrente de terapias ou efeitos colaterais e complicações impactam a renda pessoal e familiar. Estes custos, diretos e indiretos, atualmente identificados como toxicidade financeira, impactam significativamente a vida dos pacientes e de seus familiares.

Há o risco de perda total de todas as economias da pessoa ou da família, ou da perda de emprego ou falência de seus negócios. Isso preocupa os doentes não apenas em relação à sustentabilidade destes gastos por muito tempo – o tratamento de câncer leva, geralmente, meses – mas também no que diz respeito à proteção de sua família do ponto de vista financeiro.

Os doentes, afinal de contas, têm clara percepção do risco de vir faltar, em futuro não muito distante, a seus parceiros ou dependentes, com a consequência estressante de dificuldades financeiras futuras.

Muitas vezes, estas preocupações acabam levando a uma pior qualidade de vida, com limitação voluntária dos gastos, e até a redução de chances de cura ou de sobrevida prolongada.

A sociedade, e principalmente os médicos, devem ficar atentos a estes fatos.

Infelizmente, a maioria dos médicos não fornece a seus pacientes informações detalhadas a respeito destes custos extras, por desconhecimento, desinteresse, dificuldade de discutir tópicos fora da terapia em questão, ou até falta de tempo.

Assim, acabam tirando dos doentes as chances de optarem por este ou aquele tratamento, levando-se em conta não apenas as chances de cura ou controle da doença (expostos em porcentagem acima ou abaixo desta ou daquela estratégia terapêutica), mas também o peso sobre bolsos e suas economias.

Os doentes não têm outra fonte confiável para estas informações além de seus médicos. E nós, como profissionais da saúde, não temos o direito de continuar falhando grosseiramente nesta tarefa. •

Publicado na edição n° 1329 de CartaCapital, em 25 de setembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Toxicidade financeira’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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