Thaís Cremasco

Advogada, especialista em Gênero, Saúde da Mulher e Direitos Humanos pela Universidade de Stanford, conselheira e coordenadora do Núcleo de Violência contra a Mulher da OAB/SP, e cofundadora do Mulheres pela Justiça.

Opinião

Tortura reprodutiva e o Brasil sob o olhar da ONU

O Brasil precisa ser confrontado. Não apenas por suas cidadãs e cidadãos, mas pela comunidade internacional

Tortura reprodutiva e o Brasil sob o olhar da ONU
Tortura reprodutiva e o Brasil sob o olhar da ONU
Manifestação contra o PL que equipara aborto a homicídio no Rio de Janeiro. Créditos: Fotos Públicas
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No Brasil, a infância sangra em silêncio enquanto o Estado se ajoelha diante de fetos e fecha os olhos para o sofrimento das meninas. A retórica “pró-vida” tornou-se escudo para a tortura: enquanto se proclama a defesa da vida, naturaliza-se a pedofilia, transforma-se o estupro infantil em estatística e converte-se a dor das meninas em moralismo de púlpito. A violência que escolhemos não ver tem nome, rosto e corpo de menina.

Todos os dias, 26 meninas com menos de 14 anos dão à luz no Brasil. São 26 infâncias interrompidas, 26 corpos violentados, 26 crimes acobertados por um Estado que prefere crucifixos a políticas públicas. Essas meninas não são mães — são vítimas. Mas, num país onde o moralismo vale mais que a Constituição, a vítima é tratada como cúmplice e o agressor como “homem de família”. O mesmo Estado que pergunta “que roupa a mulher usava” agora especula se “a criança consentiu”. O que está em jogo não é apenas uma distorção moral, mas uma violação massiva de direitos humanos.

O artigo 217-A do Código Penal é cristalino: toda e qualquer prática sexual com pessoa menor de 14 anos configura estupro de vulnerável. A violência é presumida. A lei não exige resistência nem força física — apenas consciência jurídica. Quem precisa compreender o crime é o adulto, não a criança. Cobrar discernimento ou consentimento de uma menina é tortura psicológica institucionalizada.

A cada 24 horas, 100 crianças sofrem violência sexual no país. Mais da metade das vítimas abusadas têm até cinco anos de idade. E 70% dos crimes acontecem dentro de casa, perpetrados por quem deveria proteger. O Brasil é o 5º país do mundo em denúncias de abuso sexual infantil pela internet, com notificações que dispararam nos últimos anos. Em 2024, as denúncias de abuso e exploração sexual contra crianças e adolescentes aumentaram 195% em relação a 2020, saltando de 6.380 para 18.826 casos registrados pelo Disque 100. No total, são mais de 115 mil vítimas por ano.

A subnotificação é a regra: estima-se que apenas 7,5% dos casos chegam às autoridades. Isso significa que milhares de estupros sequer são conhecidos pelo Estado — não há boletim, não há investigação, não há justiça. O silêncio burocrático é cumplicidade.

A maioria das vítimas é menina: em 2023, 87,1% dos casos de violência sexual contra menores de 19 anos tinham meninas como vítimas. E 45,5% das crianças abusadas são negras. A violência sexual é a violação que mais vitima meninas no Brasil.

Enquanto isso, tramita no Congresso um Projeto de Decreto Legislativo que pretende revogar uma resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que garante atendimento humanizado e acesso ao aborto legal previsto no artigo 128 do Código Penal. Se aprovado, o projeto eliminará esse direito, transformando o que a lei reconhece como vítima em gestante forçada — uma condição que, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), configura tortura e tratamento cruel, desumano e degradante.

A ONU, por meio do Comitê de Direitos da Criança e do Comitê de Eliminação da Discriminação contra a Mulher (CEDAW), já declarou que obrigar meninas estupradas a manter a gravidez viola tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário — como a Convenção sobre os Direitos da Criança, a Convenção de Belém do Pará e a CEDAW. A OMS considera que negar o aborto em casos de estupro é uma forma de violência de gênero e de tortura reprodutiva. Ao desrespeitar esses compromissos, o Estado brasileiro institucionaliza a crueldade.

O que se vive hoje é uma tentativa perversa de revogar a proteção legal e moral das meninas em nome da fé e da conveniência política. O feto — ainda sem voz e sem gênero — é santificado, enquanto a menina violentada é deixada para morrer socialmente, em silêncio e abandono. No Brasil, a vida é “sagrada” apenas enquanto é abstrata; quando tem rosto, sangue e medo, deixa de ser prioridade.
Não se trata de ser a favor ou contra o aborto. Trata-se de ser a favor da vida das meninas, da vida que já existe, que respira, que sente dor. Negar o aborto legal a uma criança estuprada é repetir o crime. É transformar o Estado em cúmplice do agressor e a Constituição em hipocrisia litúrgica.

O Brasil precisa ser confrontado — não apenas por suas cidadãs e cidadãos, mas pela comunidade internacional. A ONU Mulheres, em diversos pronunciamentos, já monitora a escalada de violações contra meninas e adolescentes estupradas e forçadas à maternidade. Nenhum país que se proclama democrático pode aceitar que crianças de 10, 11 e 12 anos pariam o fruto de seu próprio estupro em nome da moral religiosa. Isso não é “debatível”. É tortura disfarçada de fé.

Enquanto o Congresso legisla contra os corpos das meninas, o patriarcado reza para que elas permaneçam em silêncio. Mas o silêncio também mata. E nós, que atuamos no Direito e nos Direitos Humanos, não podemos ser cúmplices de um país que converte o sofrimento infantil em política de governo.

O Brasil precisa escolher: proteger o feto ou proteger a criança.
E se ainda houver algum resquício de humanidade em nossas instituições, essa escolha deveria ser óbvia.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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