

Opinião
Tornozeleiras não bastam
A democracia não se defende sozinha. E enquanto houver tentativa de golpe, haverá também resistência


A prisão domiciliar de Jair Bolsonaro é, ao mesmo tempo, uma cena tardia de responsabilização e um sintoma da condescendência institucional com que o autoritarismo ainda é tratado no Brasil. O ex-presidente, acusado formalmente de articular um golpe de Estado, agora cumpre medida cautelar sob o conforto da própria casa, recebendo aliados, dando sinais de que não pretende recuar de sua vocação golpista.
Não há exagero algum em lembrar que Bolsonaro é réu por crimes que atentam contra a democracia, a Constituição e o Estado de Direito. A Procuradoria-Geral da República já pediu sua condenação por abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e associação criminosa, crimes que somam mais de 40 anos de prisão. Há provas materiais. Mas a Justiça, que tantas vezes age com fúria e agilidade contra lideranças periféricas e movimentos sociais, agora caminha a passos lentos diante daquele que mobilizou as Forças Armadas contra as urnas.
Sim, Bolsonaro está em prisão domiciliar. Mas continua cercado de aliados, de visitas oficiais autorizadas pelo STF, de lives que chegam por mãos terceiras, de articulações que misturam política, desinformação e impunidade. Seu entorno opera como se ainda estivesse em campanha. E talvez esteja.
Não podemos tratar esse episódio como um ato isolado. O bolsonarismo não é apenas um projeto de poder. É uma máquina de destruição institucional, que usou o aparato do Estado para deslegitimar as eleições, perseguir adversários e produzir uma arquitetura clandestina de inteligência, como mostraram as investigações sobre a “Abin paralela”, com ataques diretos a organizações da sociedade civil, jornalistas e defensores de direitos humanos.
Essa estrutura golpista não foi desmontada. Está apenas reconfigurando suas rotas. Ainda atua pelas redes, nos bastidores, nas câmaras legislativas, nas polícias. Ainda conta com financiamento, proteção e um discurso cuidadosamente construído para pintar a responsabilização como perseguição. É a velha tática do algoz que se faz de vítima.
É por isso que o momento exige lucidez e ação. Exige que a Justiça vá até o fim. Que as investigações não sejam abafadas por negociações políticas ou cálculos eleitorais. Que as forças democráticas não se intimidem diante das ameaças ensaiadas por aliados do ex-presidente, como a ofensiva para travar votações no Congresso ou pressionar por sanções internacionais contra ministros do Supremo. A cada recuo institucional, o bolsonarismo avança.
Na Rede Liberdade, aprendemos que a luta por democracia não se vence apenas nas urnas. Ela exige memória, enfrentamento e organização. Foi assim que nascemos, ainda sob o impacto da prisão injusta de Preta Ferreira. E é assim que seguimos: monitorando, denunciando, defendendo.
É também por isso que nos preocupa o tratamento desigual que o sistema de Justiça reserva às figuras do poder e aos defensores do povo. Se fosse um jovem negro da periferia quem desafiou frontalmente uma decisão judicial, violando medidas cautelares, estaria agora em uma cela superlotada, sem habeas corpus preventivo, sem coletiva de imprensa, sem carro preto para visitas de governadores.
Não pedimos vingança. Mas exigimos coerência. A Justiça que tarda ou hesita com os poderosos naturaliza a perseguição aos vulneráveis. Quando Bolsonaro é tratado com complacência, o recado enviado à sociedade é claro: há pesos e medidas diferentes conforme o lugar que cada um ocupa no espectro político e social.
Bolsonaro precisa ser julgado com rigor. Não apenas por seus atos mais recentes, mas por tudo o que representa. Porque sua prisão domiciliar, embora importante, não pode ser o desfecho simbólico de um ciclo. Ela precisa ser o início de uma resposta firme, articulada e contínua ao projeto autoritário que ele encarnou e que ainda tenta sobreviver, disfarçado de mártir. A democracia não se defende sozinha. E enquanto houver tentativa de golpe, haverá também resistência.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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