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Opinião

Todos são gotas de chuva

Desde o desembarque dos primeiros europeus, este céu ameríndio coleciona motivos para vir abaixo

Ailton Krenak. Foto: Purki Ailton Krenak é quem diz que suspender o céu é ampliar o nosso horizonte. Foto: Purki
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“Quando o céu está em queda, todos são gotas de chuva” é o que conta Renata Tupinambá. Sua frase parece marcar de forma bastante precisa não somente os riscos a que estão submetidos os povos indígenas [e no limite, toda a vida] em território brasileiro, mas também o vigor de sua luta por manter a estrutura celeste a salvo do perigo chamado homem branco. Pois de fato, desde o desembarque dos primeiros europeus, este céu ameríndio, que de tempos em tempos ameaça ruir, coleciona motivos para vir abaixo. Motivos que explodem atualmente num crescente de intolerância, preconceito e violência que o atual governo insiste em adotar como política pública.

Os exemplos empilham-se diariamente. O mais recente de que temos notícia remete à expedição organizada pelo Ministério da Defesa a Terra Yanomami, quando mulheres de militares estarreceram o país ao promoverem “ações sociais” junto aos indígenas. Na ocasião, além de desrespeitarem todas as normas de segurança relativas à contenção da Covid-19 em terras indígenas, as esposas dos militares aproveitaram a situação para maquiar as yanomami e “deixá-las bonitas”.

São anhanguera, diria a Tupinambá, espíritos ceifadores que trazem a morte. Anhanguera é velho, não se enganem, os índios o têm enfrentado ao longo dos anos com diferentes nomes, como bem lembra Renata, desde os bandeirantes e tantos outros que vieram antes. Com efeito, a mensagem que subjaz a ação “desastrada” das esposas dos militares informa que no Brasil vivemos ainda sob o cabresto colonial. Pois a ideia aparentemente inocente de maquiar as índias carrega em si – nem tão maquiado assim – o antigo ideal da submissão indígena, de sua incorporação forçada a Civilização: “as minorias terão que se submeter a maioria”, vociferou o messias ensandecido em seu proselitismo genocida.

De tal forma, os arautos do apocalipse indígena professam abertamente que, assim como os yanomami, todo eles – os mbyá, os kaiowá, os krahô,… – devem ser como todos os outros, isto é, exatamente do mesmo modo como as mulheres yanomami devem ser bonitas como as esposas dos militares. Trata-se da velha lógica colonial afirmando que é preciso misturar as coisas para eliminar a diferença. Que é preciso “submeter as minorias à maioria”, fazendo delas um tipo de maioria de segunda ordem. A supressão da diferença constitui-se então como técnica de imposição aos índios de modelos estéticos, políticos, de saúde e educação. Como diz Renata, modelos que nada representam em suas realidades. Eles – os brancos de sempre – “querem que acreditemos que não podemos ser tradicionais e
contemporâneos ao mesmo tempo”.

Mas quando o céu está em queda, todos são gotas de chuva. De modo que o vigor da luta indígena consiste justamente em opor a todo o momento outra concepção de mistura aos velhos ideais coloniais de submissão. Uma anciã guarani contava certa vez que os mbyá vivem atualmente num mundo mudado, num mundo que demanda novas palavras. Explicava sobre a importância de rezar, fumar e meditar para ser capaz de ouvir dos nhanderukuery as palavras para este novo mundo. Porque que os guarani contam que vivem como seres divididos, seres que tem na cabeça as coisas dos dois mundos. De sorte que a anciã parecia sugerir que adaptar as palavras significa justamente apostar na capacidade de trânsito entre aquilo o que eles – os índios – denominam de “mundo dos brancos” e aquilo que representa o seu próprio mundo. Quer dizer que misturam as coisas num sentido totalmente distinto ao que caracteriza o ideal colonial de mistura; já que buscam não a submissão de um mundo ao outro pelo
decaimento de um dos termos, mas participar simultaneamente de ambos.

Em certo sentido, é como se eles afirmassem que são índios e brancos – que também são brancos, já que nunca deixam de também ser índios. Ter na cabeça as coisas dos dois mundos remete então a um movimento de sair de si e entrar em alguma coisa do outro, em suas formas e em sua aura, como diz o filósofo Emanuele Coccia. E se neste mundo tudo se produz na mistura produzindo mistura, adquirir novas palavras representa um movimento de
retorno, um voltar a si mesmo como preparação para o encontro. É o que penso ter dito a anciã guarani: misturar, isto é, adaptar as palavras, é deixar-se atravessar pelo mundo para então atravessá-lo.

Ailton Krenak é quem diz – no que penso ir ao encontro das palavras da anciã – que suspender o céu é ampliar o nosso horizonte, é enriquecer as nossas subjetividades e que foi assim que os povos ameríndios puderam resistir até hoje. Expandir a subjetividade, afirma Krenak, quer dizer mergulhar na experiência de nossa própria circulação pelo mundo, não como metáfora mas como fricção; mas para isso é preciso partir sempre da negação da ideia de que somos todos iguais. Suspender o céu significa, portanto, apostar na mistura, tal como fazem os guarani. Pois se para adiar o fim do mundo é necessário ser capaz de contar mais uma história, nada mais importante do que a capacidade de adaptar as palavras ao mundo sobre o qual se caminha. O mundo que se apresenta ao se fazer presente. “Contar mais uma história, recontar a história, propor contranarrativas, ter autonomia para contar a própria versão”, como diz Célia Xakriabá, são formas de afirmar que a presença indígena, ao contrário do que imaginam nossos governantes, não é parte de uma história passada, mas sim de uma história tecida agora, no presente, e que mira o futuro.

Pois quando o céu está em queda, todos são gotas de chuva. E é John Trudell, o Santee-Dakota citado por Renata, quem afirma que “quando as gotas de chuva se tornam claras e coerentes, elas se tornam o poder da tempestade”. E se hoje “o tempo corre como o vento do início de uma grande tempestade”, a Tupinambá nos lembra que suas avós contavam que eles – os brancos de sempre – não podem parar a chuva.

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