

Opinião
Terceiro e quarto turnos
Com Lula eleito e Bolsonaro derrotado, o trabalho está só (re)começando para quem tem o sonho e o projeto de um país no qual o povo seja soberano


A ideia de “terceiro e quarto turno” não é meramente figurativa. Há ao menos dois aspectos bastante concretos a seu respeito. Começo pelo fato de que, durante a curta e vergonhosa primeira fala de Bolsonaro após sua derrota eleitoral, vemos, mais uma vez, um sujeito estapafúrdio e indigno de qualquer cargo de responsabilidade, mas que, ainda assim, foi escolhido por mais de 58 milhões de pessoas em urnas espalhadas pelo País.
Em seu pronunciamento de, aproximadamente, dois minutos, e feito mais de 40 horas de silêncio após o resultado, o derrotado não reconheceu nem a derrota nem a desordem rodoviária instaurada por grupelhos fanáticos e alucinados que seguiam cada palavra vazia do “capitão”. Falou, no entanto, sobre duas alucinações de sua visão destorcida da realidade: “injustiça eleitoral” e “movimentos populares”.
Trata-se de alucinações porque, até agora, não houve sequer a apresentação do tão demandado relatório sobre a confiabilidade das urnas eletrônicas e porque não há “base popular” nos movimentos que travaram mais de 200 rodovias no País. O que vemos são estratos médios da sociedade que dispõem de tempo, recursos e automóveis para se prestarem a tal papel.
Bolsonaro também tentou culpar os “métodos de esquerda” utilizados pelos seguidores de sua seita. Acredito que não há grande novidade até aqui. O bolsonarista é essa espécie de sujeito irracional (e/ou perverso) que ignora 700 mil mortes pela pandemia, mas se põe “de luto” por uma vitória democrática. Que advoga que a “economia não pode parar” quando se anuncia uma pandemia, mas que deixa obstruídas as rodovias quando seu candidato não se elege. O autoritário preserva sempre algum traço infantil e perverso que torna seu convívio na democracia impossível.
O que surge como verdadeiramente preocupante é o apoio e a conivência da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e de frações da Polícia Militar, flagradas em diversos pontos do País prestando suporte, apoio ou prevaricando diante das obstruções.
A ideia de “terceiro turno” visa chamar atenção para o fato de que o sentimento bolsonarista-radical-antidemocrático que se enraizou ao longo destes anos e que foi sempre suportado por uma ideologia saudosa da ditadura civil-militar produziu uma infinidade de cenas abjetas em nosso país. Isso precisará ser cortado. E é um trabalho que requererá empenho de todas as partes interessadas em pensar uma democracia.
Não estamos defrontados com algo corriqueiro. Apesar de pífio, irracional e, em muitos casos, inexpressivos – a PM em São Paulo, por exemplo, levou dez minutos para normalizar o tráfego na Rodovia Castelo Branco –, os episódios recentes nos fazem lembrar que o golpe ocorrido na Bolívia foi deflagrado por atos terroristas tratados como “protestos” e que contaram com o apoio das polícias e a omissão conivente das Forças Armadas. Naquele país, o golpe foi revertido e os golpistas estão presos, foram responsabilizados e tornaram-se inelegíveis. Resta saber o que acontecerá com os daqui.
Isto nos conduz à ideia de um “quarto turno”. Bolsonaro aparelhou – quando não desmontou ou subverteu – a maioria das instituições democráticas do País. A aprovação do orçamento de guerra e a PEC Kamikaze são apenas duas menções do quadro a ser gerido pela chapa de Lula nos próximos quatro anos.
O governo de transição, ao que tudo indica chefiado por Geraldo Alckmin, terá a tarefa de compreender e tornar pública a situação legada ao País das contas, pastas e ministérios após quatro anos de uma gestão absurda e criminosa. Os entraves produzidos pelos interesses antagônicos da frente ampla também serão uma questão fundamental a ser enfrentada no próximo período da política institucional. Isso, sem falar nas dificuldades em governar com uma Câmara de maioria bolsonarista e um Senado bastante complicado, como vem apontando o historiador e cientista político Luiz Felipe de Alencastro.
Conseguimos uma importante vitória nas urnas no segundo turno das eleições de 2022, mesmo contra todas as baixarias bolsonaristas. Nossa tarefa agora é garantir o fortalecimento e o avanço de alternativas mais à esquerda. Não podemos produzir de novo uma “ampla anistia”. O futuro não nos perdoará. Seguimos. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1233 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE NOVEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Terceiro e quarto turnos”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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