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Teologia política, veneno social

A entrada da religião no debate político é um rápido caminho para o inferno

Foto: DOUGLAS MAGNO / AFP
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Os festejos de Nossa Senhora Aparecida foram transformados num lamentável e obsceno espetáculo de aproveitamento político. Aqui, numa reportagem de uma das televisões portuguesas que cobrem a campanha eleitoral, apareceu uma senhora brasileira que lamentava, abanando a cabeça, a mistura entre política e religião. “Não é nada bom”, dizia. Não, não é nada bom. No fundo, a intuição da senhora exprime a tentação religiosa de impor as suas crenças a toda a vida social e estender a polícia moral sobre os comportamentos individuais. Os momentos mais cruéis, mais violentos e mais sombrios da história humana podem encontrar-se nos períodos em que o fanatismo religioso dominou e controlou todos os aspectos da vida pública. O Irã de hoje é uma excelente ilustração do que significa uma revolução liderada por padres.

Se a natureza da política é a pluralidade humana, como escreveu uma das mais brilhantes filósofas do século XX, então talvez se possa dizer que não há pior veneno social do que a mistura da política com a religião. A política é plural, a religião é una. A política é o reino do debate e da crítica, a religião é o da fé e do dogma. A política lida com opiniões, a religião lida com a “Verdade”. O que me parece absolutamente deprimente é ver as diversas lideranças brasileiras numa competição feroz para se apresentarem perante o seu público como religiosas, como se essa qualidade fosse importante para o exercício do cargo, como se essa condição fosse determinante para a competência política ou para a qualidade da governação. O espetáculo é triste.

A entrada da religião na política é um rápido caminho para o inferno. Começa por discriminar aqueles que não creem e acaba por perseguir os que não creem suficientemente. A Verdade religiosa, assim, com V maiúsculo, quando decide entrar na política não resiste a dominar toda a sorte de moral pública e a impô-la com violência não apenas sobre quem não acredita, mas também sobre quem não acredita de forma correta, isto é, sobre quem não professa uma fé de “estrita obediência”, para recuperar uma expressão que fez moda nos círculos estalinistas do passado. De forma simples, a entrada da religião na política não é apenas uma forma de corromper a política, mas de perverter a religião. Dito talvez de forma mais erudita, a entrada da religião na política substitui a ideia do Deus compreensivo e bondoso do Novo Testamento, pela ideia do Deus absconditus, atuando como déspota arbitrário e impiedoso com o comportamento humano desregrado.

Essa mistura cria a sua própria agenda, que se desdobra em várias dimensões. Por exemplo, a linha política chamada de “família tradicional” é conse­quência direta dessa tentativa de fazer regressar a religião ao centro da vida política. Ela surge por oposição à nova família democrática, na qual a mulher tem um estatuto de igualdade relativamente ao marido, e os filhos têm direitos. Estas são as diferenças. Direitos. Direitos da mulher e direitos dos filhos. A verdadeira razão de ser da proposta que fala em família tradicional é fazer regressar o antiquíssimo conceito de “chefe de família” em que o marido manda, a mulher aceita e os filhos obedecem. Esta é a agenda escondida. Tudo, claro, em nome de Deus e da verdadeira natureza das coisas.

Na verdade, o regresso de Deus à pauta política pela mão da extrema-direita mundial (Deus, Pátria e Família) não significa outra coisa a não ser um ajuste de contas com os avanços recentes a que muitos chamam de “políticas de identidade”. Esta agenda é contra os direitos da mulher, contra o aborto, contra os homossexuais, contra os maconheiros, contra os miseráveis, contra os negros, contra qualquer minoria que conspurque a identidade nacional. O verdadeiro povo brasileiro é representado pelo cristão autêntico (branco, é claro), que está ameaçado por um qualquer “não povo” que conspira contra a Pátria e contra Deus. Não, a inclusão da religião na política nunca foi, em nenhuma circunstância histórica, inclusiva, mas foi, isto sim, seletiva e excludente. E, não duvidem, a febre puritana acabará por perseguir os próprios religiosos, culpados não por não terem fé, mas por professarem a fé errada. O espetáculo a que assistimos na campanha brasileira de competição entre lideranças sobre quem é mais religioso ou menos religioso não protege a religião, mas a expõe numa área de onde deveria estar afastada. A vida política empobrece quando exige a prestação de provas religiosas. Quem verdadeiramente respeita a religião deseja que esta esteja fora da política. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1231 DE CARTACAPITAL, EM 26 DE OUTUBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Teologia política, veneno social”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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