

Opinião
Tempos sombrios: o Brasil e o mundo em tópicos
Lula, Bolsonaro, Cid Gomes, Bernie Sanders, coronavírus, pânico nos mercados…


1 Comecemos com alegria, que Vinicius dizia ser a luz no coração. O papa recebeu Lula e dirigiu-lhe palavras muito bonitas: “Gosto de o ver andando pela rua”. Andando pela rua. Não quer vê-lo apenas livre, quer vê-lo no espaço público, quer que fale com as pessoas, quer que faça política. Quer dizer-lhe que a sua voz é necessária. Também acho. Nunca, como agora, a América Latina precisou tanto da esquerda democrática.
2 Vi a reportagem do encontro entre os dois na televisão portuguesa. Passou também noutras televisões europeias. No Brasil, nada. Nem nas principais televisões nem nos principais jornais. Eis o compromisso que alguns jornalistas parecem ter com os seus leitores e espectadores – esconder e manipular, manipular e esconder. Só verás o que eu quero que vejas. Mas tudo tem um tempo. Depois desse tempo, a história costuma regressar. E a galope.
3 Entretanto, o jornalismo brasileiro reage indignado aos ataques e grosserias do presidente. Todavia, se alguma coisa de positivo podemos com justiça dizer em favor deste último, é que nunca os enganou. Sempre disse ao que vinha. A violência política sempre foi o único eixo compreensível da sua proposta política. Nada mais se entendia porque nada mais interessava – só a violência contra os adversários. Nesta altura, boa parte dos jornalistas gostaram porque era contra os outros. Sim, os outros, aqueles que nunca fizeram autocrítica, que é, como sabemos todos, assunto da política, não do jornalismo.
4 Leio reações muito incomodadas com a atitude do senador Cid Gomes, que, ao comando de uma máquina escavadora, quis derrubar o muro do quartel em que se entrincheiravam polícias militares amotinados. A mim me pareceu um gesto singular de coragem e de desassombro de um responsável político. Diante de um Estado sitiado e chantageado por agentes armados, resolveu agir em defesa da lei. Levou dois tiros e com eles passou à condição de herói republicano.
5 Nesta grave crise do Ceará o ministro da Justiça foi igual a si próprio. O motim deixou um rasto de sangue de mais de duas centenas de assassinatos. O ministro reservou, no entanto, palavras amáveis para os militares amotinados dizendo que “não podem ser tratados como criminosos”. Eis o sublime descaramento de quem um dia usou a toga para lançar sua carreira política. Não é um político, é um fingido.
6 Parece que sempre haverá manifestação contra o Congresso, agora com o apoio explícito do presidente. Eis o sonho populista: o povo revoltado contra o partidarismo paralisante, o povo majoritário manifestando-se em favor das suas tradições políticas e contra uma elite que se deixou corromper e não mais as representa, o povo virtuoso que se levanta contra o não povo – os afeminados, os pobres, os diferentes, os portadores de ideologias estranhas aos valores genuínos da nação. Não queremos mais partidos, nem debates, nem diferenças, nem política – que tudo isso acabe de vez. Um país, uma vontade, um chefe. Visto daqui tudo parece grotesco e ridículo. Que opereta.
7 Bernie Sanders é o novo fenômeno no coração do império. Seja o que for que venha a acontecer, ganhe ou não a nomeação, a sua corrente política e o movimento que criou não poderão mais ser ignorados no interior do Partido Democrata. São muitos e exigem ser ouvidos. Aqui na Europa, seria visto como um social-democrata, na América insistem em chamá-lo de comunista. Talvez seja oportuno lembrar que o mesmo aconteceu com Franklin Delano Roosevelt, nos anos 30 do século passado, quando criou o programa de intervenção estatal mais ambicioso de todos os tempos – investimento público, proteção dos desfavorecidos, impostos progressivos, segurança social, negociação coletiva. O New Deal não foi nenhum programa comunista, representou uma profunda transformação democrática. De certa forma, naquele momento nasceu o que hoje chamamos de Estado Social. Não subestimem Bernie Sanders. A verdade é que aconteceu antes.
8 O coronavírus é uma emergência de saúde pública com consequências devastadoras na economia mundial. Hoje, as Bolsas refletem a tragédia. Em todo o mundo – aqui na Europa em particular – os Estados adotam medidas duras para conter a propagação do vírus ao mesmo tempo que lançam programas de estímulo econômico de modo a contrariar a quebra na demanda. Em tempos de incerteza, todos se viram para o Estado. Ninguém se lembra agora dos mercados. Estes fazem o que sempre fizeram em tempos de aflição, fugir em pânico. O que vemos hoje é a debandada.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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