CartaCapital
Templo religioso é atividade essencial em tempos de Covid-19?
Ou ainda: ao cristão é dado a oportunidade de cultuar a Deus de outras maneiras que não se aglomerando em templos num momento de pandemia?


No dia 25 de Março de 2020, por meio do decreto 10.292/20, o presidente Bolsonaro modificou o decreto 10.282/20 e inseriu atividades religiosas de qualquer natureza como atividades essenciais. Este artigo, portanto, pretende discutir brevemente duas coisas: 1) o que são atividades essenciais para o decreto e 2) qual a essencialidade das atividades religiosas.
Pois bem, ao colocar “Atividade religiosa” como “essencial” é importante destacar que o presidente abriu uma ressalva: “a permanência dessas atividades deverá obedecer determinações do Ministério da Saúde”. Ocorre que, para o Ministério da Saúde – bem como para a OMS (Organização Mundial da Saúde) – a ordem acerca da liberação para se aglomerar é: “Não para todos”. Entretanto, o autor deste artigo reconhece a liquidez do pensamento do Bolsonaro e de seus ministros e que o ministro da saúde recentemente disse: “ir à igreja pode, mas sem aglomeração e abraços”. Tentativa de desesperada do ministro de, a contragosto, alinhar o pensamento do Bolsonaro ao seu.
Não colou.
O fato é que para agradar grandes pastores evangélicos, porque estes o ajudaram na campanha presidencial, o Bolsonaro se viu pressionando a liberar a celebração de cultos, mas ao mesmo tempo não poderia ir de encontro à determinação do Ministério da Saúde; então liberou os cultos, mas colocou a ressalva que proibia a aglomeração. Em resumo: liberou sem liberar.
Mas passemos ao decreto, que é o ponto jurídico do nosso artigo.
Quem é honesto sabe que inserir “Atividade Religiosa” como “essencial” no decreto fere o próprio conceito de “essencial” no decreto, pois, segundo seu artigo 3º:
“Atividades essenciais são aquelas indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, assim consideradas aquelas que, se não atendidas, colocam em perigo a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população”.
Logo, para compreender o conceito de “essencial” no decreto e obter a resposta sobre se atividade religiosa se encaixa ou não, basta fazer duas perguntas:
- se não houver culto, a sobrevivência, a saúde ou a segurança da população estarão em risco?; e
- é possível cultuar em casa?
Se a resposta para a 1) for negativa e a resposta para a 2) for positiva, então a atividade religiosa não é atividade essencial.
Como eu disse, o conceito de essencial no decreto não permite inserir atividade religiosa como essencial no decreto. Seria o que na filosofia chamamos de Contradictio in terminis.
Agora no ponto de vista teológico
Templo! Vocês sabem que a confusão armada pelos evangélicos conservadores, em especial os adeptos do neopentecostalismo, é porque eles querem os templos cheios: temple is money. O templo cheio é sobre tudo simbólico, porque demonstra poder. Assim, templo cheio e cultos ocorrendo é essencial para os interesses – sobretudo políticos – do líder religioso da denominação.
Mas a pergunta importante é: ao cristão é essencial ir ao templo?
Valho-me aqui da lógica do decreto bolsonarista para tentar responder à questão acima posta. Assim, atividade essencial é aquilo que é indispensável, que não pode ser substituído e que se não realizada coloca em risco a salvação do fiel.
É verdade que os cristãos há muito tempo adoravam no templo. Era costume. Além do mais, não custa destacar que os primeiros cristãos não eram cristãos, mas judeus convertidos ao cristianismo. O próprio Cristo não era cristão – termo este que surgiu mais de 60 anos após a sua morte, conforme nos mostra Atos 11:25-26. Importa destacar, por curiosidade histórica, que o termo “cristão” não era nada elogioso, mas um título hostil para destacar aqueles que não seguiam a Herodes, chamados de “herodianos”.
Desta maneira, não sendo cristãos, mais judeus convertidos, é natural que estes mantivessem antigas práticas da religião recém adota. Nas palavras do teólogo Russell Champlin,
“Até a destruição de Jerusalém, no ano 70 depois de cristo, os cristãos que vivem em regiões judaicas continuaram a observar os ritos do templo. Para esses, o judaísmo tinha de desaparecer lentamente e com honras”.
Frequentavam templo, sim? Mas esta era a prática principal? Não. Inclusive, não desconheço a carta aos Hebreus e o seu conselho em 10:25, embora muitos desconheçam que o texto não faz nenhuma referência a templos ou a igrejas. O termo grego usado é traduzido, segundo o dicionário grego/português editado por Gringrich & Danker como “encontro” ou “reunião”. E encontros, pasmem, não ocorriam somente nos templos, mas também “mas nas casas”, cf. Atos 2:46.
Houve a ressignificação da presença de Deus, está podendo ser sentida em qualquer lugar, sem intermediação, porque, como está em Mateus 18:20, “onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles”. Mas não somente em qualquer lugar onde estiverem dois ou três, também na solidão do próprio aposento:
“entra no teu quarto, fecha a porta e ora ao teu Pai em segredo. E teu Pai, que vê no segredo, te recompensará”.
Diante do exposto, fica fácil responder à questão proposta neste nosso ponto teológico se ao cristão é essencial ir ao templo.
Formulo ainda outra questão: “ao cristão é dado a oportunidade de cultuar a Deus de outras maneiras que não se aglomerando em templos num momento de pandemia?”. Se a resposta para a primeira pergunta for não e a resposta à pergunta for sim, então a questão está resolvida.
O decreto do Bolsonaro que coloca “Atividade religiosa”, como meio de legitimar a ocorrência de cultos em meio a uma pandemia não encontra amparo jurídico e nem teológico. Mas eis um grande desafio à frente: ensinar aos cristãos que o essencial é adorar a Deus e não a se aglomerar em templos.
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