Alberto Villas
[email protected]Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'
‘O ano 2000 acabou chegando e as máquinas começaram a falar à torto e a direito’, escreve Alberto Villas
O cérebro eletrônico faz tudo
Quase tudo
Mas ele é mudo
[Gilberto Gil]
Já foi o tempo em que chamávamos o computador de cérebro eletrônico e que o compositor baiano Gilberto Gil dizia que ele fazia quase tudo, mas era mudo. Vivíamos em 1969.
O presidente do Brasil era um ditador, Emilio Garrastazu Médici, o homem pisava na lua, os Beatles cantavam Here Comes the Sun no disco Abbey Road, Samuel Beckett levava o Nobel de Literatura e um meteorito chamado Allende caia em Chihuahua, no México. E havia sexo, drogas e rock and roll em Woodstock.
Os computadores eram monstrengos da IBM que pesavam toneladas. O futuro estava apenas nos filmes dos Jetsons, na televisão, um admirável mundo novo em que bastava apertar um botão e saia um cheeseburger e a faxineira era a Rose, um robô que lavava, arrumava e passava.
Naquele ano, o cérebro eletrônico da canção de Gil começava a colocar as asinhas de fora, resolvendo problemas que os matemáticos quebravam a cabeça para resolver. Mas eles eram mudos.
A UD, uma Feira de Utilidade Doméstica, realizada todos os anos em São Paulo, era concorridíssima. Era naquele pavilhão que éramos apresentados para aquelas máquinas maravilhosas.
Lembro-me bem de uma máquina de lavar louça que virou matéria no Jornal Hoje, que editava. Ela falava! Sim, ela falava: Feche a tampa! Favor colocar sabão! Agora coloque o amaciante! Aperte o botão para iniciar! Acho que a máquina de lavar louça tagarela não pegou porque nunca mais vi uma falando por aí na casa de ninguém.
Mas o ano 2000 acabou chegando e as máquinas começaram a falar à torto e a direito.
O Shopping Iguatemi agradece e deseja boas compras, me disse um dia a cancela do estacionamento.
Se for para pedir segunda via da fatura, disque 1. Se for para cancelamento, disque 2, falou a voz eletrônica do cartão de crédito.
Por favor, fale em poucas palavras o que deseja, foi logo dizendo a voz do Bradesco Prime.
Fui acostumando com essas vozes do além ao ponto de um dia ligar para uma companhia aérea e, assim que ouvi um alô, fui logo perguntado: você é um humano? Veio um silêncio sepulcral.
Agora inventaram uma tal de Alexa e quem tem uma em casa está encantado.
Alexa, acende a luz!
Alexa, apague a televisão!
Alexa, vai chover?
Alexa, feche a janela!
Não precisa nem pedir por favor.
Gil dizia que o cérebro eletrônico manda e desmanda, mas ele não anda. Não andava há 51 anos atrás, agora anda, Gil. Minha filha tem um aspirador que passa o dia circulando pela casa sem ninguém encostar nele.
Sinceramente, não quero papo com esses monstrengos com seus botões de ferro e seus olhos de vidro.
Em 2020 continuo com Gil e não abro: só eu posso chorar quando estou triste, só eu. Eu cá com meus botões de carne e osso, eu falo e ouço, eu penso e posso, eu posso decidir se vivo ou morro porque sou vivo, vivo pra cachorro.
O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.
Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.
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