Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Sonhos

Pequena história de um amigo que continua no lado esquerdo do meu peito

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Um dia, meu médico disse que dificilmente eu teria problemas de memória na velhice. Não somente pelo jornal diário da família que escrevo e cultivo, desde 6 de novembro de 1977, mas também porque trabalho com a cabeça dia e noite. Fiquei feliz.

Meu pequeno museu do jornalismo não é informatizado e funciona à base da lembrança. Outro dia, um amigo meu perguntou se eu tinha uma reportagem sobre racismo, publicada na revista francesa Actuel e eu me lembrei perfeitamente, era assunto de capa. Fui procurar na minha revistaria e, depois de muito vasculhar, achei. Era uma revista com mais de quarenta anos.

Esse mesmo médico me sugeriu anotar meus sonhos diariamente, já que gosto de escrever, às vezes misturando a realidade com a ficção. Topei e hoje já tenho 1843 sonhos registrados e catalogados. Desde aquele janeiro de 2014, nunca mais deixei de sonhar um dia sequer. E registrar.

Sonho constantemente com passarinhos. São eles que mais aparecem nos meus sonhos. Curiós, periquitos australianos, canarinhos belgas, coleirinhas. Freud tentou me explicar com o livro A Interpretação dos Sonhos, mas não conseguiu. Li muito sobre o assunto, mas nunca cheguei a uma conclusão. O Guia dos Sonhos, Sonho e Arte, O Livro dos Sonhos, O Livro dos Sonhos e da Sorte, li tudo isso por curiosidade.

Diz a lenda que sonhar com dentes caindo significa que alguém da família vai morrer. Já sonhei muito, fiquei preocupado, mas fomos em frente. Diz a lenda que sonhar com fezes significa muito dinheiro. Nunca sonhei.

Minha mãe sonhava com coisas incríveis. Um dia, o meu pai foi Banco do Brasil receber o seu ordenado, voltou para a repartição e o dinheiro sumiu. Naquela época, as pessoas iam ao banco e levavam pra casa o salário inteiro. Um mês depois, minha mãe sonhou com um funcionário do Serviço de Meteorologia, que havia sido assassinado num hotel no centro de Belo Horizonte e ele disse a ela que o envelope com o dinheiro estava caído dentro do sofá de couro que ficava na sala do meu pai. Ela ligou pra ele na certeza de que o dinheiro estava lá. Viraram o sofá de cabeça pra baixo e o envelope caiu no chão com o ordenado do meu pai.

Lembro-me bem quando minha irmã mais velha era só preocupação, medo de tomar bomba em Francês no Colégio Sion. Minha mãe sonhou com o mesmo funcionário assassinado, o Osvaldo Menezes, dizendo para ela estudar o ponto de número 9. Era uma prova oral em que o aluno tirava de dentro de um saquinho de pano, um número com um assunto e tinha de dissertar sobre ele. Não deu outra. A minha irmã enfiou a mão no saquinho de pano e tirou o ponto número 9. Ela quase desmaiou na hora, mas recuperou-se porque sabia tudo de cor. Tirou 10 com louvor e foi aprovada.

Além dos passarinhos, sonho muito com peixes voando, aviões caindo, elevadores abertos de prédios em construção, paredes para serem escaladas e esquilos andando pelos gramados de Londres, Sonho muito com pessoas.

A pessoa que mais sonhei desde o dia em que comecei a anotar os meus sonhos é a minha amiga Sandra Annenberg. Treze vezes. Não sei se Freud explica. Talvez a vontade que temos de voltar a trabalhar juntos novamente, explique. Nos sonhos, temos sempre muitos projetos, como se sonho fosse vida real.

Não sei se é porque editei no inicio dos anos 2000, o livro A Fantástica Volta ao Mundo, de Zeca Camargo, ele está em segundo lugar nos meus sonhos, mas distante da Sandra. Seis vezes. Hoje resolvi contar aqui essa história, porque o meu amigo Geneton Moraes Neto, morto em 2016, empatou com Zeca Camargo essa noite.

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Há várias semanas venho sonhando com ele e hoje foi um sonho, digamos, de verdade. Geneton tocou a campainha da minha casa e quando atendi, disse a ele:

– Eu sabia que você não tinha morrido!

Geneton vestia uma calça Lee, uma camisa cor de rosa e um tênis Conga sem cadarço. Nos abraçamos fortemente e ele estava vivo, senti isso. Estava ali para retomarmos o nosso projeto.

Nosso projeto, quando o seu coração parou de bater, estava andando. Queríamos fazer o Museu do Jornalismo, juntando meu acervo ao dele. Estávamos entusiasmados quando ele se sentiu mal numa ilha de edição e foi levado ao hospital, onde passou alguns meses e acabou nos deixando.

Como penso muito nesse projeto, talvez venha sonhando muito com ele, Geneton, amigo do peito. Não sei que fim levaram suas revistas, seus recortes de jornal, suas cadernetas de anotações, suas fitas K-7, seus vídeos em Super-8. Falha minha. Deveria ter procurado a Beth, sua mulher, mas não procurei.

Como toda vez que ia ao Rio, jantava com ele no Restaurante À Mineira, em Botafogo, onde comíamos aquele angu mole e planejávamos o Museu do Jornalismo, ir à Cidade Maravilhosa virou um sonho. O Rio de Janeiro está em terceiro lugar. Quatro vezes.

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