Sidarta Ribeiro

Professor titular de neurociência, um dos fundadores do Instituto do Cérebro da UFRN

Opinião

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Sonhar a nossa história

Prefiro sonhar com o futuro sinalizado pelos atos, gestos e símbolos iniciais a dar ouvidos às críticas precipitadas

Sônia Guajajara faz parte da reconstrução coletiva – Imagem: Katie Maehler/Apib Comunicação
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Aos cem dias do novo governo, me choquei com a saraivada de críticas feita por algumas personalidades, articulistas e comentaristas na mídia corporativa e nas redes sociais. Com todo respeito ao mago Paulo Coelho, o que ele esperava que Lula e sua equipe tirassem da cartola nestes primeiros três meses?

A verdade é que o Brasil está na UTI, e quase tudo que o novo governo fez até agora foi no intuito de recuperar, regenerar e reanimar uma sociedade fragilizada em muitas frentes. Em três meses Lula e seu time deram sangue, oxigênio e nutrientes ao País combalido, retomando a proteção das populações indígenas, a responsabilidade ambiental, o investimento em cultura e ciência, a construção de moradias populares, o combate à fome, a disciplina nos quartéis e a posição pacifista na ONU.

Criticar essas ações como mera retomada de velhos projetos é uma tolice sem tamanho ou, pior, má-fé. Seria como criticar que um paciente com quadro hemorrágico fosse tratado com fármacos eficazes e procedimentos bem conhecidos para conter o sangramento, repor o sangue e sustentar o volume intravascular.

Ou será que as pessoas já se esqueceram de que o Brasil foi humilhado, sabotado, assaltado, estuprado, corrompido, torturado e quase destruído na pancreatite política que nos vitimou desde 2016? Será que ainda não compreendemos as lições da vandalização da República causada pela Intentona Fascista de 8 de janeiro? Será que não aprendemos nada com a badtrip antidemocrática em que nos metemos?

Que país medíocre é este, em que o presidente Lula, corajosamente eleito pelo povo brasileiro numa disputa desigual contra gângsteres golpistas, precisa gastar energia sobre-humana para convencer a Faria Lima, os agroboys e outros espertos do tal mercado a ganharem um pouco menos sem trabalhar?

Que país é este, em que um presidente recém-empossado – e por um triz não derrubado – precisa gastar mais e mais capital político para acomodar os interesses de personagens do naipe de Arthur Lira e Roberto Campos Neto?

O capitalismo medíocre desses dirigentes medíocres é totalmente sem futuro, vazio de qualquer plano, sonho ou projeto de país que vá além de seus próprios umbigos. Dois homens brancos ricos que não enxergam um palmo à frente do próprio nariz de Pinóquio. E, por trás deles, uma legião de gente gananciosa e chantagista que continua a agir para limitar nossas oportunidades, rebaixar nossos horizontes e amaldiçoar nosso devir.

É preciso reparar os danos causados àqueles que construíram quase tudo no país e ficaram com quase nada

Prefiro sonhar com o futuro sinalizado pelos inúmeros atos, gestos e iniciativas do novo presidente, suas ministras e ministros, secretárias e secretários. Luís, Marina, Geraldo, Rosângela, Fernando, ­Nísia, Camilo, Margareth, Flávio, Luciana, Rui, Simone, Esther, Miriam, Paulo, Sônia, Anielle, Alexandre, Isolda, Silvio, Estela, Carlos e tantos mais estão sonhando, fazendo e curando.

Mas essa multidão de talentos ainda é insuficiente. A responsabilidade é de cada um de nós. Será que só conseguimos fazer frente ampla para vencer eleições? Quando é que vamos conseguir alinhar nossos vetores e verdadeiramente transformar nossa sociedade em alguma coisa menos doente? Quando é que vamos conseguir fazer um esforço sustentado para nos construirmos como nação?

Como escapar da gigantesca mediocridade deste país que insiste em desperdiçar seu povo trabalhador e criativo, na luta renhida para manter os privilégios iníquos e a descomunal mais-valia? Como desmontar essa máquina horrorosa de moer gente, a mais antiga Parceria Público-­Privada do País, que promove a morte dos matáveis desde a aurora do Brasil Colônia?

Cadê o nosso sonho? Como vamos construí-lo sem compreender e reparar os danos dessa história em que indígenas, pretos, pardos, mulheres, nordestinos e favelados construíram quase tudo e não ficaram com quase nada?

Estamos numa encruzilhada perigosa. Nos últimos 50 anos, a ­produtividade do trabalho estagnou, a pirâmide etária inverteu-se e nos desindustrializamos ao mesmo tempo que degradamos nossos biomas. Sem compreender e curar a herança do passado, é cruel o lugar que nos cabe no futuro.

Precisamos sair dessa. Temos de acordar enquanto é tempo e colocar as mãos à obra. Para implementarmos um projeto viável de país, precisamos de uma revolução que mobilize toda a nossa sociedade para dar um verdadeiro passo à frente. Para resolver o problema ancestral da opressão da maioria é preciso focar na mais eficaz e estratégica reparação possível: a educação pública de excelente qualidade.

A meta existencial do Brasil é alcançar ótima escolaridade da população. O caminho para alcançar essa meta exige uma contundente valorização material e simbólica do magistério. Exige também a adoção da educação em tempo integral, voltada para a construção de subjetividade e autonomia num mundo acadêmico e profissional desafiado pela sucessão cada vez mais rápida de tecnologias.

Todas as nossas outras metas socioeconômicas – piso para investimentos estatais, fortalecimento do SUS, estímulos à ciência e à cultura, justiça tributária, baixas taxas de desemprego, inflação e juros – se articulam e contribuem para a revolução educacional que precisamos fazer. Se perdermos o bonde da história, deixaremos de ocupar o lugar geopolítico que nos cabe por vocação e necessidade neste século XXI: o de potência multiétnica ambiental, pluricultural, bioinformática e global.

Se não conseguirmos chegar a isso pela aplicação inteligente de nossos melhores esforços, continuaremos a ser um povo tropical parasitado pelo extrativismo voraz e pelo fundamentalismo cristão, mero fornecedor de commodities e barbáries enquanto estas forem necessárias.

Para evitar esse destino, precisamos sonhar e construir coletivamente uma nova história. As cem primeiras páginas já estão escritas. •


*Sidarta Ribeiro é professor titular de Neurociência e um dos fundadores do Instituto do Cérebro da UFRN. Integra o Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (RJ).

Publicado na edição n° 1254 de CartaCapital, em 12 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Sonhar a nossa história’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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