Opinião

Somos parentes pela dor

Nestes momentos de confinamento, consolar pode ser mais importante do que nunca

Médico abraça colega na cerimônia de homenagem aos reforços de saúde enviados a Wuhan, China. (Foto: STR / AFP)
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Estes dias de imensa dor permitem-nos perceber que somos uma família, mundial. Uma família que, muitas vezes, perdeu a capacidade de consolar, confortar, mas, ainda assim, une os que não perderam um mínimo de sentimento de humanidade.

A geografia, como sempre, muito nos ensina, inclusive sobre o passado, uma função arqueológica sua, em nada desprezível. Nesse sentido, um exemplo de como fomos, paulatinamente, perdendo a dimensão da consolação é a importância da Igreja da Consolação em São Paulo.

Templo situado da região central da cidade, está ornado de belíssimas pinturas interiores, que, atualmente, vão descascando e decaindo. Igualmente importante para a cidade, a avenida da Consolação é, ainda hoje, a principal artéria a unir o Centro e os Jardins, inclusive o quadrilátero da saúde, onde estão as Faculdades de Medicina e de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, bem como o Hospital das Clinicas, o Emílio Ribas e o Instituto do Coração, entre outros centros de excelência médica.

Porém, a perda de importância da consolação em nossa cultura deveria preocupar-nos. Se fizermos uma interpretação livre da etimologia da palavra, perceberemos que tem a ver com estar junto, compartir a solidão do outro, com o não estar só do outro. Nestes momentos de confinamento, consolar pode ser mais importante do que nunca. Estar com o outro, partilhar, romper o isolamento psíquico, talvez ainda mais severo do que o físico.

A propósito, terminei de ler o magnífico “O Oráculo da Noite – A História e a Ciência do Sonho”, do doutor Sidarta Ribeiro, volume editado pela Companhia das Letras. Na obra, o autor menciona que “pesquisadores da Universidade de Nova York, liderados pelo biólogo chinês Wenbiao Gan, publicaram na prestigiosa revista Science a demonstração inequívoca do fortalecimento sinóptico durante o sono numa região cerebral submetida a aprendizado.”

Ao falarmos de fortalecimento sináptico estamos falando de aumento da inteligência (inter-leggere, no latim). Portanto, as sinapses se beneficiam da liberdade onírica, aumentando, assim, a inteligência. Tratam-se de relações que se constroem em ambiente de liberdade, de proximidade, e de relações. Resulta que na liberdade, na criatividade, nos relacionamentos encontramos também a inteligência, que não pode florescer nos antípodas: o cerceamento, o autoritarismo, a segregação.

Posteriormente, aquela mesma equipe de cientistas publicou estudo complementar, como nos informa o doutor Ribeiro:

“…o papel do sono REM sobre as sinapses envolve tanto a eliminação quanto o fortalecimento de sinapses, tanto ao longo do desenvolvimento do embrião quanto durante o aprendizado em animais adultos. Sempre que a vida pede alterações no software cerebral, cabe ao sono fazer a reprogramação…O estudo demonstrou de modo contundente que o sono REM facilita a eliminação de novas sinapses após o aporte massivo delas, causado pelo sono de ondas lentas….O que é ainda mais extraordinário é que o sono REM também atua para fortalecer um seleto grupo de sinapses, levando ao seu crescimento e consequentemente à persistência dessas conexões no longo prazo. Uma enormidade de sinapses é gerada, mas quase todas são eliminadas, permitindo a seleção positiva do pequeno número de sinapses mais bem adaptadas ao novo contexto. Nas palavras de Gan e colaboradores, “o sono REM é crucial para incorporar novas sinapses seletivamente em circuitos existentes, atuando como um ‘comitê de seleção’ para construir e manter a rede sináptica.” Sem sono REM as memórias desapareceriam rapidamente sem deixar vestígios, não podendo ser acumuladas para o futuro nem transmitidas de geração em geração. Sem sono REM não haveria cultura.”

Vale lembrar que o sono REM é o mais profundo e, destarte, o de maior liberdade onírica. Com razão, o autor inicia o capítulo seguinte com o título: “Dormir para criar”. Vale lembrar que Freud já descobrira que a nossa inteligência está em relação direta com nossa capacidade de estabelecer relações, inclusive – e principalmente – com nosso inconsciente.

Entretanto, quantas vezes não agimos como os idiotas tão bem descritos por Lima Barreto em “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”:

“…vão pela vida sem examinar, vivendo quase por obrigação, acorrentados às suas misérias como galerianos à calceta! Gente miserável que dá sanção aos deputados, que os respeita e prestigia! Por que não lhes examinam as ações, o que fazem e para que servem? Se o fizessem…Ah! Se o fizessem! Que surpresa! Riem-se, enquanto do suor, da resignação de vocês, das privações de todos tiram ocios de nababo e uma vida de sultão…”.

Com efeito, como vampiros que literalmente se alimentam de sangue, a banca conseguiu extrair do Congresso, na semana passada, apesar do voto contrário dos partidos de oposição, uma Proposta de Emenda Constitucional, a PEC 10, que fará com que o Banco Central compre as dívidas podres – impagáveis – dos bancos, estimada em trilhões de reais!

Busquemos manter a fé, a esperança e a caridade, lembrando as palavras do nosso eterno Arcebispo de Olinda e Recife, D. Hélder Câmara: “Não há paz sem justiça e se não há justiça em escala mundial, não haverá paz em escala mundial.”

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