

Opinião
Sociedade do espetáculo
A frenética busca por “15 minutos de fama” nas plataformas digitais tornou-se uma perigosa armadilha, ainda mais cruel quando envolve crianças e adolescentes


Esta coluna toma emprestado o título de um dos livros mais conhecidos do filósofo e teórico marxista francês Guy Debord (1931–1994). Passados mais de 30 anos de sua morte, o tema mostra-se cada vez mais atual. Para o autor, a sociedade capitalista, em seu estágio avançado, transformou as relações sociais em um grande espetáculo, no qual imagens e aparências se sobrepõem à vida real e às experiências autênticas. Nesse contexto, os sujeitos buscam sempre apresentar-se em sua melhor performance: felizes, endinheirados, desfrutando de viagens interessantes, festas incríveis etc.
Os “15 minutos de fama” que todos deveriam experimentar uma vez na vida, na visão idílica de Andy Warhol, tornaram-se insuficientes para quem vive neste mundo hiperconectado do século XXI. É preciso exibir-se constantemente, sempre na melhor pose possível. Não basta estar, eventualmente, feliz e desfrutando férias, jantando em um bistrô em Paris ou viajando em um cruzeiro de luxo. É necessário que muita gente saiba disso – e, de preferência, inveje tal privilégio. O espetáculo, escreve Debord, é uma relação social mediada por imagens que, por sua circulação, acabam por “dominar a vida”. A qualidade da inserção social do sujeito passa a ser medida pelas imagens que ele consegue produzir e divulgar.
Hoje, para o viajante, talvez importe menos o prazer de conhecer lugares novos do que o gostinho de provocar inveja nos amigos. Daí a sanha de registrar, em fotografias e vídeos, momentos supostamente maravilhosos e divulgá-los rapidamente nas redes sociais, ou enviá-los para incontáveis grupos de WhatsApp. Debord não poderia prever o que viria a ser o poder dos telefones celulares nas novas configurações da sociedade do espetáculo. Com um singelo aparelho de comunicação em mãos, as pessoas criam autoficções que lhes conferem prestígio diante dos outros.
Podemos supor, além disso, uma relação entre a predominância da imagem sobre o pensamento e o declínio das narrativas – tão caras ao meu filósofo favorito, Walter Benjamin. Quem ainda quer ouvir relatos interessantes, se estes podem ser substituídos por fotos e vídeos? Penso que o interesse genuíno em adquirir novos conhecimentos ao viajar, ou mesmo em ampliar a compreensão do mundo em que vivemos, tem sido facilmente substituído pelos efeitos fetichistas de divulgar, o máximo possível, imagens de lugares paradisíacos, restaurantes caríssimos, festas de arromba.
Outro aspecto que Debord não teria como prever é que essa hiperexposição de cenas banais do cotidiano se transformaria em um grande negócio, à medida que as plataformas digitais passaram a monetizar as publicações dos usuários com maior alcance. Hoje, grande parte dos jovens nutre a ilusão de alcançar fama e fortuna por meio desse espetáculo. E não tardaram a surgir empresários inescrupulosos, dispostos a explorar a imagem de crianças e adolescentes nas redes sociais. Como denunciou recentemente o youtuber Felipe Bressanim Pereira, conhecido como Felca, há de tudo um pouco nesse terreno pantanoso: de programas de entrevistas conduzidos por versões mirins de coaches de empreendedorismo a reality shows protagonizados por menores, nos quais eles participam de festas com bebidas alcoólicas, usam roupas provocativas e executam danças sensuais – um prato cheio para os pedófilos e predadores sexuais.
Nesse cenário, alguns pais talvez não se deem conta de que, ao buscar seus 15 minutos de fama e alguns likes, acabam expondo seus bebês fofinhos a adultos perversos que habitam os ambientes digitais. Outros, como denunciou Felca, parecem não se importar em ganhar alguns trocados com a exposição dos próprios filhos – mesmo em contextos que violam a dignidade de crianças e adolescentes.
Observem o paradoxo: justamente ali, nas situações em que a vida parece, aos olhos dos outros, mais vibrante e interessante, é onde ela acaba por ser mais aviltada. Sim, aviltada. Pois é quando o contato com o mundo deixa de ser uma fonte de experiência e passa a ser apenas uma oportunidade de exibicionismo. Perde-se, na acepção de Walter Benjamin, um elemento precioso em nossa tarefa de criar sentidos para a vida. Perde-se a capacidade de transformar o fato em narrativa e a vivência em experiência. O vazio que advém da sanha por vivências que não se convertem em experiência talvez ajude a explicar a violência que constantemente ameaça o laço social. •
Publicado na edição n° 1377 de CartaCapital, em 03 de setembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Sociedade do espetáculo’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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