Drauzio Varella

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Médico cancerologista, foi um dos pioneiros no tratamento da AIDS no Brasil. Entre outras obras, é autor de "Estação Carandiru", livro vencedor do Prêmio Jabuti 2000 na categoria não-ficção, adaptado para o cinema em 2003.

Opinião

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Sociedade da fadiga

A sensação de cansaço generalizado está entre as queixas mais frequentes nos consultórios e tem um nome: síndrome da fadiga crônica

(Foto; Wanezza Soares) Drauzio: “Se temos drogas de alta potência contra o HIV, por que não podemos desenvolver para a Covid-19?”
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As queixas sobre o cansaço exagerado tornam-se cada vez mais frequentes nos consultórios médicos. A agitação nos grandes centros urbanos explica a maioria dos casos. Comparado ao ritmo de vida do passado, o atual é alucinante. A quantidade de trabalho e de compromissos diários que somos obrigados a cumprir exige esforços e equilíbrio psicológico que não encontram paralelo, em tempos de paz, nas gerações que nos precederam.

Para agravar a situação, a tecnologia, que criou e-mails, redes sociais e levou à onipresença dos celulares nos força a permanecer online durante todo o período de vigília. Não existe experiência prévia na história da humanidade de pessoas submetidas a tantas solicitações simultâneas quanto nós.

O estresse associado a esse estilo de vida tem repercussões físicas e mentais que atormentam a existência dos que passam os dias nessa roda-viva, sejam mulheres, sejam homens ou crianças. Transtornos psiquiátricos como depressão e ansiedade generalizada adquiriram características epidêmicas.

O ato de fechar os olhos e pegar no sono todas as noites, como os demais mamíferos, virou um desafio diário para grande número de pessoas, muitas das quais só conseguem se acalmar na cama com a ajuda decisiva de um comprimido, que as tornará dependentes dele para sempre.

Nesse contexto, surgiu um quadro que recebeu o nome de síndrome da fadiga crônica, cuja característica principal é a de que o cansaço costuma instalar-se depois de infecções causadas por vírus ou bactérias.

A dificuldade de separar os sintomas de fadiga intensa e arrastada manifestados nessa síndrome daqueles associados ao estilo de vida atual fez com que muitos médicos duvidassem da existência da síndrome, deixando pacientes desamparados e confusos.

Imagine que você se queixe de que, depois de um episódio gripal, começou a sentir um cansaço estranho que persiste por semanas ou meses. E que, depois de visitar três ou quatro profissionais que solicitaram diversos exames, concluíram que se trata apenas de estresse ou de “problemas psicológicos” – nada que um período de férias não possa resolver.

A ausência de testes laboratoriais capazes de confirmar o diagnóstico ou afastá-lo manteve a síndrome numa espécie de limbo científico. A falta de critérios para identificá-la e caracterizar sua fisiopatologia explica o desinteresse de pesquisadores e da indústria farmacêutica na descoberta de medicamentos específicos para tratar fadiga tão incapacitante.

Estudos mais recentes, no entanto, demonstraram que se trata de uma patologia complexa, com implicações neurológicas e imunológicas que vão muito além do cansaço que domina o quadro clínico. Por isso, deve ser chamada de encefalomielite miálgica/síndrome da fadiga crônica (EM/SFC).

A revista Nature Communications acaba de publicar um estudo conduzido pelo US National Institute of Neurological ­Disorders que procurou desvendar as raízes biológicas da EM/SFC.

Depois de uma série exaustiva de exames laboratoriais e de imagem a que foi submetido um grupo de pacientes, os autores verificaram que a ressonância magnética funcional revelou atividade diminuída em áreas cerebrais que controlam os movimentos, entre outras funções. Concluíram, então, que têm origem nessas regiões sinais de alerta para evitar atividade física. Não há nada errado com os músculos: MS/SFC é uma doença do cérebro.

Os pacientes apresentaram, entre outros achados, frequência cardíaca aumentada, hipotensão postural e precisam de mais tempo para que a pressão arterial retorne a valores normais depois do exercício.

Nos linfócitos T presentes no liquor há aumento na concentração da proteína PD-1, envolvida na resposta imunológica. É como se o organismo estivesse combatendo um patógeno invasor, que os estudos até agora não conseguiram encontrar.

A medicina tem muita dificuldade de lidar com doenças que não podem ser diagnosticadas com testes laboratoriais, imagens ou outros achados objetivos. Quando as queixas não podem ser confirmadas por exames, a tendência é atribuí-las a “fatores psicológicos” – algo que, no geral, leva os pacientes a sentir culpa pelos males que os afligem.

MS/SFC é uma doença neurológica com implicações imunológicas que só agora começam a ser entendidas. Ainda não dispomos de tratamentos para aliviar o sofrimento dos pacientes, mas, pelo menos, eles não precisam achar que a causa está em seu psiquismo. •

Publicado na edição n° 1300 de CartaCapital, em 06 de março de 2024.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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