Justiça

Sobre a covid-19 e as nossas escolhas

A oportunidade que a COVID-19 está nos apresentando de alterar radicalmente nosso modelo de sociedade talvez nem seja uma escolha

Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
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“Vamos celebrar a estupidez humana
A estupidez de todas as nações
O meu país e sua corja de assassinos
Covardes, estupradores e ladrões

Vamos celebrar epidemias
É a festa da torcida campeã
Vamos celebrar a fome
Não ter a quem ouvir
Não se ter a quem amar
Vamos alimentar o que é maldade
Vamos machucar um coração
Vamos celebrar nossa bandeira
Nosso passado de absurdos gloriosos
Tudo o que é gratuito e feio
Tudo que é normal
Vamos cantar juntos o Hino Nacional
A lágrima é verdadeira
Vamos celebrar nossa saudade
E comemorar a nossa solidão”

Perfeição, Legião Urbana

Em tempos de pandemia não há como falar de outra coisa. A COVID-19, provocando um número assustador de adoecimentos e mortes pelo mundo todo, desafia nossas escolhas e impõe uma reflexão que rejeite o argumento do inimigo invisível comum. Temos que agir para combater a disseminação do vírus. Evidentemente precisamos aderir à ideia de isolamento físico e nesse sentido dar suporte até mesmo às campanhas midiáticas que reduzem o esforço conjunto a algo do tipo “todos contra o vírus”.

O que precisamos refletir, porém, é sobre o fato de que nosso verdadeiro inimigo não é o novo coronavírus. Aliás, é muito provável que ele não seja o último nem o mais agressivo que enfrentaremos. Certamente, não é o primeiro.

O que realmente nos coloca, como civilização, em posição de absoluta fragilidade diante dessa doença, é um conjunto de escolhas políticas que a sociedade está fazendo já há muito tempo. Essas escolhas nos trouxeram até aqui. São os seres humanos, portanto, que agindo de modo predatório em relação à natureza e aos seus pares, estão tornando a vida na Terra um desafio.

Outras civilizações já passaram por isso. Foram dizimadas.

O primeiro caso da COVID-19 foi diagnosticado em uma pessoa que estava em Wuhan, uma cidade chinesa com mais de 10 milhões de habitantes, um pólo industrial especializado em “ótica-eletrônica, automóveis, ferro e aço, indústria farmacêutica e pesquisas em tecnologias de eficiência energética e energia renovável”. Wuhan “tem quatro parques de desenvolvimento científico e tecnológico, mais de 350 institutos de pesquisa, 1.656 empresas de alta tecnologia, inúmeras incubadoras de empresas e investimentos de 230 empresas da Fortune Global 500. Produziu um PIB de 224 bilhões de dólares em 2018”. Essas informações obtidas em rápida consulta à internet tornam nítido o caráter de fina ironia que a doença assume…. ela surge (ou pelo menos é pela primeira vez identificada) em um dos corações do capital.

A principal hipótese dos cientistas é de que, tal como seus antecessores SARS-CoV e MERS-CoV, o novo coronavírus chega aos corpos humanos em razão da fome que levou pessoas a comerem camelos, gatos e morcegos, pois a vida nesse centro econômico altamente desenvolvido é também radicalmente desigual.

A COVID-19 tem outro traço irônico ou perverso. Não atinge a todos do mesmo modo. Pode até ser sedutor o discurso de que estamos no mesmo barco, mas não é real.

Habitamos o mesmo planeta, mas temos condições absolutamente desiguais de vida e, portanto, de reação a pandemias. Quem não tem casa, não pode fazer isolamento físico. Quem não tem trabalho, não consegue se alimentar adequadamente, não tem saneamento básico e, portanto, não terá as condições para enfrentar o vírus e a doença.

A doença não atingirá nossos corpos da mesma maneira. E mesmo que tenha sido disseminada entre pessoas privilegiadas que viajam em aviões, muitas das quais fatalmente atingidas por seus efeitos, o fato é que a doença fará muito mais vítimas entre os vulneráveis, que são a maioria, especialmente em países recordistas em desigualdade como o Brasil.

Diante de tantas constatações, cada vez mais visíveis e irrecusáveis, a COVID-19 deveria nos impedir de seguir fingindo que a desigualdade social é uma fatalidade, em relação a qual não temos responsabilidade alguma. Ou que a miséria é algo natural, que simplesmente existe no mundo. Ou, ainda, que a riqueza decorre do “mérito” individual que torna aceitável o fato de que algumas poucas pessoas contem com respiradores próprios ou helicópteros que garantam rápido atendimento em caso de contaminação, enquanto a imensa maioria está em situação de absoluto desamparo.

No entanto, ainda continuamos convivendo tranquilamente com o fato de que no Brasil há mais de 13 milhões de pessoas morando em favelas ou nas ruas; mais de 18 milhões de crianças com subnutrição, habitando em casas sem saneamento adequado, por ausência de esgoto, abastecimento de água ou coleta de lixo.

Foto: Nelson Almeida/AFP

Nada disso é decorrência de um destino inexorável.

É resultado de uma soma de opções políticas com as quais concordamos ou sobre as quais silenciamos.

Mas há o que fazer.

Por exemplo, há muito se sabe, que há produção suficiente de alimento; que há terras em abundância para todos; e que com a redução da jornada de trabalho, sem diminuição de salário, haverá trabalho remunerado para todas as pessoas.

Por isso, é tão revoltante pensar na “solidariedade” que move campanhas publicitárias pela prevenção da COVID-19 capitaneada por quem há décadas vem agindo para que essas situações não apenas se perpetuem, mas se constituam e se agravem.

Lamento, pois, não compartilhar o entusiasmo de quem confronta as declarações genocidas de alguns grandes empresários, com o discurso humanitário de outros. Todos eles (todos nós) concorremos para chegar até aqui. Isso não os coloca em pé de igualdade nem anula os efeitos positivos de movimentos solidários e responsáveis, que de algum modo contribuam para o enfrentamento da pandemia.

É só tardio, insuficiente e hipócrita.

Talvez não seja a melhor hora para dizer disso, mas é necessário.

Se não agora, quando perceberemos que escolhemos, como sociedade, um caminho totalmente equivocado, que implicou o descarte de milhões de pessoas e que, como neste instante é possível ver, abala a vida de todas as pessoas?

O mínimo que se deve fazer para reparar os erros cometidos é utilizar, emergencial e urgentemente, o capital acumulado nas mãos de poucos e dos governos na proteção dos excluídos históricos, para evitar que sejam as maiores vítimas de um mal que não criaram.

Há níveis diferentes em que essas escolhas operam. Muitas delas, mesmo sem questionar as bases de convívio social, já fariam enorme diferença em momentos como esse.

Apostar na melhor distribuição da renda é um exemplo. O imposto sobre grandes fortunas caminha nessa direção. Ainda assim, nem mesmo em tempos de crise sanitária aguda o tímido projeto de lei proposto para regulamentar esse dispositivo constitucional tem despertado interesse dos nossos parlamentares. Passados mais de trinta anos desde a promulgação da Constituição, a taxação de grandes fortunas ainda não saiu do papel.

Há também como alterar o modo de distribuição dos recursos públicos. Impostos devem servir para garantir saúde, educação, moradia e trabalho, e não para pagar dívida pública. E proprietários de templos, lanchas, jetskys e helicópteros podem e devem pagar impostos, assim como as emissoras de rádio e TV, que são concessões públicas, não devem ganhar isenção de tributos em razão do horário de propaganda eleitoral.

Segundo o TCU, em 2016 as renúncias fiscais somaram R$ 354,7 bilhões. Em 2015, o INSS deixou de arrecadar pelo menos R$ 30,4 bilhões, em razão de sonegação e inadimplência. Por que não solucionar esse gargalo?

A reforma agrária é outro exemplo eloquente. Nunca foi feita em nosso país. Ao contrário, segundo o IBGE 1% das propriedades agrícolas ocupa quase metade da área rural brasileira, concentração de propriedade privada que vem crescendo ano a ano.

Várias outras questões podem ser levantadas, como a aposta necessária em saúde e educação públicas de qualidade, o exato contrário do que estamos fazendo nos últimos anos. Se não há saneamento básico, alimentação adequada, moradia decente, se não há trabalho seguro com salário digno, se não há investimento em ciência, saúde e educação, como enfrentar uma pandemia?

Essas questões precisavam estar na ordem do dia, mesmo que não houvesse uma nova doença que em cerca de três meses já promoveu o adoecimento de mais de 826.250 pessoas e a morte de pelo menos 40.712 (dados do dia 31/3/2020). Mas não estão.

Em lugar delas, o que se vê são: medidas provisórias retirando direitos trabalhistas e propondo o endividamento de pequenos empresários ou restringindo direitos liberais como o direito à informação; um presidente e vários seguidores minimizando a realidade da doença, secundados por empresários que protegidos em suas casas exigem que seus trabalhadores sigam trabalhando; parlamentares e ministros que seguem repetindo a cantilena das reformas liberais ou revelam publicamente o descaso pela vida dos aprisionados.

Até mesmo quando tenta convencer a população de que está preocupado em salvar vidas, a proposta do presidente é que os profissionais autônomos sigam trabalhando, expondo-se à contaminação como escudos humanos, como soldados que morrerão na batalha pela sobrevivência diária. Fala em auxílio, mas concede empréstimo. Refere-se à renda básica, mas oferece esmola, exclui benefícios previdenciários e atrasa o pagamento do bolsa-família.

A distribuição igualitária de renda, moradia, trabalho e alimentação é questão central para o modelo de sociedade que temos. Exatamente por isso é bem provável que jamais esteja na ordem do dia, pois até mesmo governos comprometidos com quem vive do trabalho não conseguiram ultrapassar os estreitos limites que fazem do Estado mero agente do capital.

O grande problema é que se deveria reconhecer, como atestam os fatos históricos, que não há capitalismo sem desigualdade; que não há capitalismo sem produção de miséria.

Assim, as escolhas, para efetivamente acertar os rumos do convívio humano na Terra, deveriam ser bem mais radicais.

A oportunidade que a COVID-19 está nos apresentando de alterar radicalmente nosso modelo de sociedade talvez nem seja uma escolha. Fato é que, independente da discussão mais profunda em torno do modo de ser social (que deve ir além do período mais agudo da crise), ao menos as medidas paliativas como as que referi devem ser imediatamente adotadas pelos atuais governos.

Por ora, estamos diante da urgência do confisco e da distribuição igualitária de riqueza, de terra e de moradia àqueles(as) que, embora tenham direito constitucional e humano a uma sobrevivência digna, estão sendo, pela persistente renitência do governo federal e do grande poder econômico, propositadamente, e uma vez mais, entregues à própria sorte.

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