Camilo Aggio

Professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais, PhD em Comunicação e Cultura Contemporâneas

Opinião

Soberania popular ou soberania dos armados?

Se o candidato favorito precisa consultar militares sobre a viabilidade de sua eventual posse, temos tudo, menos algo parecido com uma democracia

Convocação das Forças Armadas: gestos de desespero
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Se a eleição de 2018 não foi uma eleição típica, a de 2022 dá sinais mais do que claros de que também não será. E vai além.

Não me refiro, definitivamente, a questões de natureza da comunicação política envolvendo redes sociais e desinformação, embora sua relevância seja indiscutível. Também não me refiro ao resultado que, inexoravelmente, virá acompanhado da apuração dos votos registrados nas urnas eletrônicas.

Refiro-me a todos os sinais mais do que concretos de que, como em 2018, o respeito ao resultado das urnas será condicionado a fatores que extrapolam, e muito, o devido respeito às regras do jogo democrático. Isso já estava posto na última eleição presidencial. Eu sou um dos que acredita que, se Fernando Haddad tivesse vencido a disputa, dificilmente teria tomado posse. E se tivesse, dificilmente permaneceria como presidente até o fim do mandato.

E por uma razão muito simples: temos forças políticas e econômicas que são representadas diretamente pelas Forças Armadas e que nela desembocam.  Chamem de exagero se quiserem, eu não me importo. Continuo sustentando que, ao menos desde 2016, temos uma democracia tutelada pelos militares.

Foram eles que garantiram o movimento golpista do impeachment de Dilma Rousseff. Para constatar ou relembrar, basta buscar as falas de Romero Jucá à época. Aquele do “Grande Acordo Nacional”. Para sacramentar a constatação, basta rememorar que, sem qualquer tipo de constrangimento e filigrana de espírito republicano, a alta cúpula do Exército divulgou, publicamente, uma ameaça ao Supremo Tribunal Federal em caso de decisão favorável ao habeas corpus que poderia tornar Lula elegível. Caso queiram um reforço maior, recomendo o livro Os Onze, de Fernando Recondo e Luiz Weber. Nele temos, dentre outras revelações de bastidores, o temor de ministros do Supremo diante de milhares de  “armados” sob o comando de militares bolsonaristas.

Mas, para quem quer evitar essas rotas passadas, ofereço uma dose fresquinha de realidade: Lula, o favorito na corrida presidencial e seu ex-ministro da Defesa, Nelson Jobim, teriam consultado generais das Forças Armadas, segundo Vera Rosa, experiente repórter d’O Estado de S. Paulo. E por qual razão? Para saber se, uma vez eleito, Lula tomará posse.

Isso seria abjeto se não fosse um escárnio. Se não vivêssemos num país com enorme vocação para a naturalização de barbaridades, inclusive em territórios políticos. Não há condição de existir um nível mínimo de democracia em um país onde o favorito a uma eleição tenha dúvidas sobre o respeito à vontade da maioria e, para dirimi-las, procure generais das Forças Armadas.

Trata-se, a rigor, da transferência da soberania popular à soberania dos armados. Quando as Forças Armadas dão a palavra final sobre os caminhos e decisões posteriores ao resultado de uma eleição, não temos a eminência de um golpe, mas um golpe praticamente consumado contra a democracia. Mas, como disse, num país de naturalizações da barbárie, essa constatação parecerá exagerada.

Por mais que Lula ou algum outro adversário do candidato dos militares vença e, efetivamente, tome posse, a informação trazida por Vera Rosa nos obriga, os democratas, a dar uma pausa nas reflexões sobre a disputa eleitoral para discutirmos seriamente (e sem eufemismos) em que tipo de solo político estamos pisando. E eu defendo há muito que estamos pisando no terreno de uma democracia flagrantemente tutelada por e para militares.

Vencer uma eleição sob essas condições não nos coloca numa posição necessariamente melhor sob o ponto de vista da democracia. Apenas tira o foco do que deveria importar: no Brasil, nunca haverá uma democracia plena se os militares continuarem ocupando uma posição central na vida política do país, inclusive sob a condição de decidir que eleição vale e qual não vale. Se cabe golpe ou se não cabe golpe.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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