

Opinião
Sob Bolsonaro, rachadinhas e rachadonas frequentam todos os ambientes do Estado
Elas não estão apenas nos gabinetes parlamentares dos filhos do presidente


Não faltam tentações no mundo dos significantes para investigar os significados que frequentam a alma bolsonarista. Fascistas, autocratas, autoritários, torturadores, são os adjetivos que se espalharam por todos os cantos.
Mas é preciso escavar mais fundo nos territórios da convivência humana para entender o surgimento (ou ressurgimento?) de uma camada social que se notabiliza pela hostilidade e agressividade contra tudo e contra todos, ou seja, contra as instituições do Estado Moderno.
Observador das turbulências que assolaram a sociedade inglesa no século XVII, Hobbes imaginou que o terror disseminado pelos bandos privados na luta religiosa só poderia ser contido pela concentração do poder e da força no Leviatã. Para ele, a sociedade em que os homens convivem pacificamente só pode surgir quando o Estado está consolidado, em que todos estão submetidos às leis emanadas do soberano. Não são acidentais os ataques desferidos pela turma de Bolsonaro às instituições da República, particularmente ao Supremo Tribunal Federal.
Em seu livro O Eu Absoluto, a psicanalista Elisabeth Roudinesco oferece algumas pistas para o desvendamento desse fenômeno social e político. Essas mazelas afetam outras partes do mundo contemporâneo. E atenção: uma inspeção cuidadosa nas redondezas das amizades e parentescos pode revelar que o Bolsonarismo está à espreita.
Diz Roudinesco: “O outro é, então, assimilado a um inimigo, e sua diferença é negada. Como não se admite mais nenhuma dinâmica de conflito, cada um busca refúgio em seu pequeno território para fazer guerra contra seu vizinho. Ser obcecado pelo corpo, adquirir uma boa imagem de si, afirmar seus desejos sem sentir culpa, desejar o fascismo ou o puritanismo: esse seria o credo de uma sociedade ao mesmo tempo depressiva e narcísica, cuja nova religião seria a crença na terapia da alma baseada no culto de um ego hipertrofiado”.
Em sua configuração atual, o capitalismo escancara a incapacidade de entregar o que promete aos cidadãos. Os trabalhos de destruição da subjetividade iluminista são realizados por uma sociedade que precisa exaltar o sucesso econômico e abolir o conflito. Nesse ambiente competitivo, algozes e vítimas das promessas irrealizadas de felicidade e segurança assestam seus ressentimentos contra os “inimigos” imaginários, produtores do seu desencanto. Os inimigos são os outros: os imigrantes, os pobres preguiçosos que preferem o bolsa família e recusam a vara de pescar, comunistas imaginários etc.
As normas sociais da concorrência utilitarista que guiam o sujeito pós-moderno, levam à morte o indivíduo iluminista de Adam Smith, aquele consciente de sua liberdade e empenhado na preservação de sua autonomia. Ele foi substituído por um indivíduo depressivo em seus insucessos e frustrações, sempre preocupado em retirar de si, com doses maciças de Prozac, a essência de todo o conflito.
A rejeição pós-moderna é mais profunda porque, de forma devastadora, erodiu os sentimentos de pertinência à mesma comunidade de destino, suscitando processos subjetivos de diferenciação e (des)identificação em relação aos “outros”. E essa recusa do outro vem assumindo cada vez mais as feições de um individualismo tosco, agressivo e antirrepublicano.
Os icebergs que despontam nesse mar de desarranjos sociais e econômicos assumem as feições de grupos políticos fascistoides, como é o caso dos invasores do capitólio nos Estados Unidos em janeiro de 2021 ou dos milicianos, fardados ou não, que apoiam Jair Bolsonaro.
Na parte submersa desses icebergs estão as personalidades bolsonaristas. A rejeição do outro, seja ele qual for, configura um individualismo frustrado e antissocial, cuja afirmação se concretiza na exibição agressiva de armamentos, sempre prestes a se realizar no assassinato dos discordantes.
A reiterada ameaça nas redes sociais de eliminação física dos discordantes se acumplicia à apropriação privada do Estado para a cominação das finalidades e proveitos das “pessoas de bem”, o que envolve o completo desapreço pelas instituições republicanas, aí incluída a tentativa reiterada de arregimentar as forças de segurança para as fileiras das milícias.
Rachadinhas, rachaduras e rachadonas, esse trio não frequenta apenas os gabinetes parlamentares dos filhos do presidente, mas já penetrou todos os ambientes do Estado brasileiro. Aí está o episódio da “privatização” dos recursos do FNDE no Ministério da Educação. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1203 DE CARTACAPITAL, EM 13 DE ABRIL DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Privatização à Bolsonaro”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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