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Só para lembrar

Sem gasto, não há poupança a ser encarnada nos ativos financeiros

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O indivíduo-investidor-empreendedor deixa de tomar seu Primitivo, guarda as uvas para investir na vinícola do vizinho e vai sorver sua preciosidade daí a cinco anos - Imagem: iStockphoto
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Ao percorrer as páginas do livro Para Não Esquecer: Políticas Públicas Que Empobrecem o Brasil topei com o artigo de Edmar Bacha. O texto empenha-se em perpetrar a comparação entre as experiências de política econômica de Brasil e Coreia nas últimas décadas. Essa incursão nos labirintos da experiência coreana suscitou minhas dúvidas e discordâncias.

Deixo, no entanto, para a próxima edição de CartaCapital a crítica às considerações de Edmar Bacha sobre as divergências entre as experiências coreana e brasileira. Hoje, vou concentrar minhas desavenças com suas ideias acerca da relação poupança-investimento.

Aí vai o ensinamento de Bacha: “De forma simplificada, o crescimento do PIB depende do aumento do estoque de bens de capital: máquinas, edificações e equipamentos capazes de gerar mais produção. Para possibilitar a aquisição de novos bens de capital, é preciso que uma parcela da renda deixe de ser gasta na compra de bens de consumo e se direcione para a compra dos bens de capital. As famílias, as empresas e o governo acumulam poupança, que é em geral disponibilizada no sistema financeiro. E este fornece os recursos para que as empresas comprem novos bens de capital. A poupança externa é uma forma adicional de financiar a aquisição de bens de capital. A quantidade de bens de capital que será comprada com a poupança depende de seus preços. Os preços dos novos bens de capital determinam o poder de compra da poupança. Quanto mais caros forem esses bens, menos deles a poupança conseguirá adquirir. E quanto PIB adicional será gerado pelos bens de capital adquiridos depende da produtividade desses bens. Uma máquina que produz 50 unidades de produto por hora é mais produtiva que outra que produz 40 unidades”.

Bacha acompanha a formulação da Escola Austríaca, de Von Mises a Hayek. A expansão em equilíbrio da economia está submetida à decisão intertemporal que define a preferência dos agentes individuais entre consumo presente e consumo futuro. O aumento da propensão a poupar hoje induziria o mercado a esperar um aumento do consumo amanhã, aumento antecipado hoje pela demanda por novos bens de produção (investimento).

A divisão da renda entre consumo e poupança dependeria da taxa natural de juro que exprime a “produtividade do capital” no sentido de Böhm-Bawerk. Em condições de pleno emprego dos fatores de produção, a taxa natural exprime a escolha entre a utilização dos recursos ­reais no presente (consumo) ou no futuro (poupança/investimento). O investimento é um processo longo e indireto de acesso ao consumo, o consumo diferido.

Bacha embrenha-se nas cavernosas regiões da Escola Austríaca

A hipótese sobre a relação poupan­ça/in­­ves­timento dos austríacos tem uma dimensão “monetário-financeira”: a ­teoria dos fundos prestáveis. O equilíbrio da economia “real” só é assegurado se a poupança prévia acumulada sob a forma de depósitos é mobilizada pelos bancos que operam como meros intermediários entre poupadores e “gastadores”. As operações de crédito, mediadas pela taxa natural de juro, apenas redistribuiriam as posições entre credores e devedores, refletindo as distintas preferências entre consumo presente e consumo futuro (investimento). A dívida de A é o crédito de B: os balanços se transformam simetricamente sem perturbar a troca intertemporal de recursos reais entre o presente e o futuro.

A decisão crucial entre consumir recursos reais hoje ou postergar esse consumo para o futuro nos regaços do investimento é a proeza do capitalismo sem dinheiro e, portanto, sem capital monetário: a renúncia a um prato de comida transmuta-se em uma fábrica de alfinetes. Assim, a poupança é imediatamente investimento.

Hayek dispõe-se a demonstrar no livro Prices and Production que “quando o volume de dinheiro é elástico pode existir uma falta de rigidez (sic) entre a poupança e a criação de capital real”. Os desequilíbrios só podem irromper se deflagrados pelo desalinhamento entre a taxa monetária de juro e a taxa natural, graças às maldições da expansão do crédito e da moeda. É necessário salientar que, na visão de Bacha e dos austríacos, a ­renda da “economia como um todo” está dada pela utilização, em pleno emprego, dos fatores e recursos reais.

Thorsten Polleit, economista que milita nas cavernosas regiões da Escola Austríaca, escreveu que Marx, no ­Manifesto Comunista, recomendou a “centralização do crédito nas mãos do Estado, por meio de um banco nacional com capital estatal e um monopólio exclusivo”.

Como é sabido, a quantidade de ouro e prata não pode ser aumentada à vontade. Como resultado, a quantidade de crédito (em termos de empréstimos e saldos de dinheiro emprestado) não pode ser facilmente expandida de acordo com a conveniência política. No entanto, Marx pode já ter fantasiado, o que seria possível uma vez que o Estado seja colocado em uma posição onde possa criar dinheiro através da expansão do crédito; onde o Estado usurpou e monopolizou a produção de dinheiro.

O economista da escola austríaca recomendaria um sistema de crédito sem a permissão “comunista” de criar moeda. Assim, o capitalismo respeitaria sua condição natural de economia governada pelos indivíduos frugais e empreendedores. O indivíduo-investidor-empreendedor deixa de tomar seu Primitivo, guarda as uvas para investir na vinícola do vizinho e vai sorver sua preciosidade daí a cinco anos.

Keynes e Schumpeter desmontaram as elegâncias da macroeconomia bem-comportada de Bacha ao conceber o capitalismo como um sistema monetário-financeiro, sempre estimulado (e perturbado) pelo “dinheiro elástico” que assustava Hayek. Ademais de um meio de circulação de mercadorias, o dinheiro em sua forma capitalista é, sobretudo, uma aposta na geração e acumulação de riqueza futura, o que envolve a contratação de mais trabalhadores mediante o pagamento de salários monetários e aquisição de novos meios de produção com o propósito de capturar um valor monetário acima do que foi gasto. Se não há aposta na criação de riqueza futura, não há gasto e, se não há gasto, o circuito da renda monetária fenece. Se não há confiança na recuperação vantajosa do gasto, o potencial criador de riqueza recolhe seus impulsos criativos para repousar o dinheiro nos confortos da liquidez. Sem gasto e criação da renda não há poupança monetária a ser encarnada nos ativos financeiros emitidos para abrigar a riqueza privada. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1212 DE CARTACAPITAL, EM 15 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Só para lembrar”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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