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Serpente de duas cabeças

Lavajatismo e bolsonarismo, irmanados na destruição do Estado de Direito, continuam à espreita

Foto: Jorge Araújo/Folhapress e Evaristo Sá/AFP
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O Estado Democrático de Direito ampara-se em determinadas dimensões materiais e formais que podemos resumir em supremacia da Constituição, juridicidade, democracia, República, separação das funções estatais e garantia dos direitos fundamentais. A conformação do poder político e a organização da sociedade pelo Estado Democrático de Direito são, nesses termos, condição de realização da justiça em sua acepção plena.

Entretanto, o Estado de Direito e a democracia sucumbem ao agir soberano em decorrência, dentre outros fatores, da forte influência do positivismo analítico que, lastreado no paradigma ­subjetivo-idealista (esquema ­sujeito-objeto) e na pureza metodológica, alargou os limites da discricionariedade do agente estatal dotado do poder decisório. Nesse contexto, diversos espaços civilizatórios foram minados pelo agir soberano de matriz lavajatista e bolsonarista, consoante concepção schmittiana daquele que decide sobre a exceção e suspende direitos.

A lógica do lícito-ilícito, própria do Direito, foi superada por uma lógica absolutamente distinta. A referida exceção caracteriza-se, ainda, pela simplificação da decisão, a qual é desprovida de qualquer mediação real pelo Direito, e por uma provisoriedade inerente. Não se trata de extinguir o Direito, mas de suspendê-lo em situações específicas com finalidades extrajurídicas. A desumanização levada a efeito pela exceção ocorre escolhendo o inimigo e nomeando-o. É a linguagem que desumaniza o inimigo por meio do enquadramento em determinada categoria supressora de qualquer individualidade.


PEDRO SERRANO. Professor de Direito Constitucional e de Teoria Geral do Direito na Graduação, no Mestrado e no Doutorado da PUC-SP.

A análise do autoritarismo líquido, assim intitulado por não se assumir como tal, não ser uniforme e minar, em intensidades variadas, os âmbitos da vida democrática, impõe aprofundada avalisção dos fatores de desestabilização e de subversão dos direitos fundamentais e da democracia.

A premissa essencial é a de que os mais recentes mecanismos de exceção possuem uma lógica distinta dos Estados totalitários de outrora. Consoante acurada análise de Ernst Fraenkel do totalitarismo do século XX, a emergência do por ele intitulado Estado dual pressupunha a coexistência de Estado-norma e de um Estado de prerrogativas: de um lado, normas relativas às relações privadas e ao sistema de justiça visavam, essencialmente, garantir previsibilidade e continuidade do sistema capitalista, ao passo que, no campo dos direitos fundamentais, prevalecia a exceção pela suspensão do Direito e da Constituição. Para nós, a semelhança entre a cláusula de plenos poderes do artigo 48 da Constituição de Weimar com o Ato Institucional nº 5 de 1968 é cristalina.

Hoje em dia, nos deparamos com perfis distintos de autoritarismo. Por inexistir uma declaração de suspensão de direitos, há uma liquidez. As medidas de exceção são fragmentárias no sistema e convivem com decisões democráticas. Os direitos são suspensos de fato e de forma fraudulenta e não de modo declarado. Foram essas premissas que nos levaram a cunhar a expressão autoritarismo líquido para, com ela, nos referirmos às medidas de exceção no interior das rotinas democráticas e da processualística penal que, imersas em medidas fragmentadas e cirúrgicas, são acionadas sob uma aparência de juridicidade. A medida de exceção é Direito no plano estrutural, mas não é Direito no plano funcional.

HOJE EM DIA, A OPERACIONALIZAÇÃO DE GOVERNOS AUTORITÁRIOS OCORRE POR MEIO DA RELAÇÃO PARASITÁRIA COM A LÓGICA DEMOCRÁTICA

Identificamos, em manifestações dessa natureza, um poder que se apresenta de forma bruta e, por consequência, por sua não autolimitação, nem mesmo por qualquer regra de racionalidade ou coerência. Ademais, as referidas medidas de exceção, muito além de representarem mera violação a determinado direito subjetivo, fulminam a própria relação que se estabelece entre o Estado e os indivíduos em termos civilizatórios e, por essa razão, subvertem o próprio Estado de Direito e a democracia constitucional. Por essas razões, consignamos que a operacionalização de governos autoritários ocorre, na contemporaneidade, por meio de uma relação parasitária com a lógica democrática, pela aparência de respeito às instituições, à democracia e ao Estado de Direito.

Ao contrário da brusca interrupção do Estado Democrático para a instauração de um Estado de exceção, convivem um Estado Democrático de Direito subvertido, que se realiza apenas abstratamente, e um Estado de exceção que, mesmo lastreado em técnica de governança permanente de exceção, não se assume como tal. Portanto, uma das características do contemporâneo autoritarismo está, em vez da interrupção do Estado Democrático de Direito pela instauração de um Estado totalitário, na inserção de mecanismos típicos da exceção no interior da rotina democrática. Tais mecanismos se hospedam na estrutura estatal na forma de um autoritarismo líquido que convive com medidas democráticas e legítimas.

O autoritarismo líquido, tanto quanto o adensamento típico do Estado autoritário, é nefasto. Confere ao Estado um poderio que, diluído na rotina democrática, enfraquece os mecanismos de controle social do poder, bem como da sua instrumentalidade. Diante do quadro de recrudescimento das investidas contra a democracia e contra os direitos humanos e fundamentais pelo lavajatismo e pelo bolsonarismo, isso por meio de medidas de exceção típicas do autoritarismo líquido, ainda que substancialmente adensadas, a grande tarefa para o futuro é garantir a consolidação e a efetividade da democracia e dos direitos.

A deusa Themis fechou os olhos para os desmandos das corporações, poder paralelo que ameaça as liberdades e o próprio País – Imagem: Fellipe Sampaio/STF e Ricardo Botelho/Brazil Photo Press/AFP

Especificamente com relação ao lavajatismo, insta consignar que nos ensina a clássica dogmática que a obediência à racionalidade jurídica – especialmente em seus caracteres passividade, vinculação ao Direito, imparcialidade e dever de fundamentação – confere ao sistema de justiça uma qualificação técnico-jurídica que legitimaria toda e qualquer técnica decisória. Entretanto, a ­teoria da decisão jurídica, o que inclui a judicial, não se subsome, como pretende a vetusta processualística, à mera compreensão de tais aspectos.

Ao Judiciário cabe, nas democracias contemporâneas, a última palavra em termos de interpretação da ordem jurídica. Em países como os latino-americanos, providos de Constituições analíticas, boa parte das decisões sobre os diversos campos da vida pública, da vida em comunidade e dos comportamentos humanos acaba transferida do âmbito legislativo para o jurisdicional. Nesse cenário, a Operação Lava Jato inseriu-se no contexto dos processos penais de exceção, bem como na materialização da presença do Estado autoritário no interior das rotinas democráticas.

Os processos penais de exceção tornaram-se, sobretudo a partir da década de 1990, em relevante manifestação do autoritarismo estatal por meio da adoção de mecanismos tais como encarceramento em massa, fracassada guerra às drogas, banalização na utilização das prisões provisórias, seletividade da punição criminal, desrespeito aos direitos e garantias penais e processuais penais, espetacularização e condenação midiática, hipernomia e apropriação privada da linguagem pelo aplicador da norma. A perseguição de líderes políticos por meio de processos penais de exceção pelo lavajatismo desaguou no autoritarismo de matriz bolsonarista, cujo adensamento foi o mais deletério desde o fim da ditadura. Os processos penais de exceção fulminaram o princípio da imparcialidade nos seus aspectos mais basilares, o que assumiu feições particularmente nefastas com a vulgarmente conhecida Operação Lava Jato, no âmbito da qual houve, em especial, severo comprometimento da imparcialidade da jurisdição, inclusive por meio da materialização de características incontestes da identificação de um inimigo e suspensão de direitos pela suposta ameaça que ele representaria ao Estado.

A exceção materializada em referidas fraudes não se identifica, ao menos exclusiva ou indistintamente, com a discricionariedade judicial, própria das concepções analíticas do Direito, com o erro judicial (error in judicando ou error in procedendo), com a figura do juiz solipsista que decide segundo sua consciência ou, ainda, com qualquer caso inequívoco de ativismo judicial ou outras formas de decisionismo.

A PERSEGUIÇÃO DE LÍDERES POLÍTICOS POR MEIO DE PROCESSOS PENAIS DE EXCEÇÃO PELO LAVAJATISMO DESAGUOU NO AUTORITARISMO DE MATRIZ BOLSONARISTA

O olhar para o futuro pressupõe, antes de tudo, o reconhecimento dos nossos recentes fracassos, a insuficiência dos nossos manuais clássicos e a falibilidade das nossas instituições. É fundamental, ainda, compreender as causas e as conse­quências do deslocamento do poder soberano do povo para aquele que toma para si a possibilidade de, inclusive pela mobilização de afetos públicos e em solapamento da verdade e da coesão social, decidir sobre a exceção. Trata-se do antídoto contra a gradual fragilização dos direitos fundamentais, dos espaços e dos sentidos da democracia e, por fim, da relação de pertencimento à sociedade.

O enfrentamento à gradual fragilização dos espaços e dos sentidos da democracia e da relação de pertencimento à sociedade requer que desnudemos os artifícios de um autoritarismo de diluição e enfraquecimento do pacto civilizatório e da coesão social. Medo, ódio, ressentimento, decepção, raiva e angústia foram, como nunca, capturados pelo soberano por meio de narrativas pretensamente racionais e legitimadoras da imposição de mecanismos de segregação e violência, em prejuízo da pluralidade e da tolerância.

A reconstrução, bem como o olhar para o futuro, requer incondicional compromisso com a democracia e com os direitos fundamentais. O lavajatismo e o bolsonarismo desenharam-se por inéditas e desafiadoras formas e discursos, o que nos leva a alertar que a história humana não ocorre em fases estanques, como às vezes a descrição didática em períodos transparece ao inadvertido. Ao contrário, ela se revela pelos processos complexos, nos quais elementos de conformação política e social do período anterior podem ser – e comumente são – identificados nos subsequentes. Inexistem, inclusive, garantias contra retrocessos e involuções civilizatórias. Só há ordem na mera descrição histórica, bem como nas tentativas de sua compreensão pelos manuais escolares. Na história vivida prevalece o caos. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1240 DE CARTACAPITAL, EM 28 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Serpente de duas cabeças”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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