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Sempre foi o minério: sobre o projeto “Barão do Rio Branco”

O interesse na Amazônia sempre foi o minério. Aliás, desde o Brasil colonial, com as Entradas e as Bandeiras, adentrando rumo ao sertão, sempre estiveram em questão as jazidas. Com a exploração das pedras, a apropriação dos corpos dos ameríndios e a destruição de quilombos, […]

(Foto: Ascom/Ibama)
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O interesse na Amazônia sempre foi o minério. Aliás, desde o Brasil colonial, com as Entradas e as Bandeiras, adentrando rumo ao sertão, sempre estiveram em questão as jazidas. Com a exploração das pedras, a apropriação dos corpos dos ameríndios e a destruição de quilombos, andavam par a par o destroçamento da terra e o aniquilamento dos povos.

Sempre foi o minério, junto com a grilagem de terras, o agronegócio e a pastagem, os mesmos que fizeram da Mata Atlântica ruínas, ainda em ferida aberta, jorrando o sangue enlameado da Vale.

No primeiro dia de outubro, Jair Bolsonaro afirmou que “o interesse na Amazônia não é no índio, nem na porra da árvore, é no minério”, ao discursar para garimpeiros de Serra Pelada (PA) que foram até o Planalto manifestar apoio ao governo e, ainda, reivindicar algumas pautas, dentre as quais a “administração militar” na área.

Nesta ocasião, Bolsonaro também atacou mais uma vez a liderança indígena Raoni Metuktire, tal como fez no discurso na ONU, em que, além de mentir sobre vários fatos, repetiu em mantra que “não há nada de errado com a Amazônia”. Essa mantra lembra o cenário de absolutas exceções institucionais, que marcaram as eleições presidenciais de 2018, quando a ministra Rosa Weber afirmou que “no Brasil as instituições estão funcionando normalmente” ou, ainda, Temer, que embora recentemente tenha reconhecido o golpe de Estado, durante os últimos suspiros do seu ilegítimo governo, em 2018, chegou a afirmar que as “instituições brasileiras estão funcionando regularmente”.

A normalização dos absurdos não é ocasional

Bolsonaro na ONU: constrangimento planetário. Foto: Alan Santos/PR

Trata-se, certamente, do controle sobre a verdade, nos moldes de Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Adolf Hitler, que afirmou que uma mentira repetida mil vezes se torna uma verdade, o que, em tempos de factóides e pós-verdades, soma-se ao desmonte educacional, institucional e das ciências.

O controle sobre a verdade, como já sinalizamos, passa pela morte do portador de notícias ruins, tal como foi feito com Ricardo Galvão, do INPE, retirado após a publicização em maior escala do aumento do desmatamento de 50% (cinquenta por cento) em 2019, apontando o total de alertas de sistema rápido Deter, que indicaram 6.833 quilômetros quadrados desmatados na Amazônia, sendo o mês de julho o pior da série histórica, com alta de 278% (duzentos e setenta e oito por cento) em relação a julho do ano passado.

Mas Jair Bolsonaro, com o seu cinismo sincero, ao menos dessa vez não mentiu: sim, Bolsonaro, sempre foi o minério. Não há nenhuma novidade na sua fala, salvo a estranha ironia ao pensar que a “porra” da árvore nunca importou, menos ainda a “porra” do índio, ambos empecilhos ao “desenvolvimento” e à gana predatória que se estabeleceu desde a colonização.

O próprio nome Brasil nasce da derrubada da floresta, primeiro, do pau-Brasil. O nome da “pátria-amada” – largamente utilizado pelo governo em campanha internacional de fake news sobre a Amazônia, visando a driblar a imagem negativa em decorrência das queimadas e desmatamento, carrega o nome do sangue da “porra” da árvore, desde o início destruída, coerente ao discurso de Bolsonaro na ONU, em que tenta convencer do fato de que o Brasil bolsonarista (ou Brazil pelo Brasil) seria consciente, sustentável, moderno, com boas oportunidades e aberto.

Tal convencimento se dá, para falar mais uma vez com Goebbels, repetindo a mesma mentira tantas vezes quanto seja necessário para que ela se torne uma verdade.

Depois da derrubada da árvore, veio o ciclo da cana-de-açúcar, também, ao custo da sustentação sangrenta do trabalho escravo no Brasil colônia, no sistema plantation e com amplo tráfico negreiro, voltado para o comércio externo. Depois, o minério, no “ciclo do ouro”, ao custo dos corpos dos ameríndios e negros, que visava a “libertar” a colônia. Após, o algodão e, então, o café e a borracha. Hoje, ainda se trata do minério, da exploração e exportação, da agropecuária, da água e do petróleo.

Não é ocasional que os garimpeiros, para falar como o xamã Davi Kopenawa, esses “comedores de terra”, foram até Brasília reivindicar “administração militar” na Amazônia, para que pudessem continuar explorando as terras yanomamis. A presidência afirma que, existindo “amparo legal” (mesmo que forjado), colocará as Forças Armadas por lá, para resolver “esse problema aí”.

Sobre o projeto “Barão de Rio Branco”

É justamente o plano colonialista revelado recentemente pelo The Intercept, chamado “Projeto Barão do Rio Branco”, em que a “porra” das árvores devem ser derrubadas, assim como os indígenas, para explorar as riquezas, fazer grandes obras de infra-estrutura e atrair novos habitantes para a Amazônia – esses “pobres” do mundo moderno, desesperados por uma possibilidade de emprego.

O plano foi apresentado pelo coronel reformado, Raimundo César Calderaro, em reunião fechada, que apresenta a ideia no mínimo esquizofrênica de “ocupar para ‘proteger’”, a chamada “soberania Amazônica”, que importa justamente na derrubada e derrocada da própria Amazônia.

Foco de incêndio em Altamira, Pará. Foto: AFP PHOTO / GREENPEACE / VICTOR MORIYAMA

Tal plano prevê, ao todo, três grandes obras no Pará, sendo uma hidrelétrica em Oriximiná, uma ponte sobre o Rio Amazonas em Óbidos e a extensão da BR-163 até o Suriname, tudo com o claro objetivo de integrar a Calha Norte do Pará, na fronteira, ao chamado “centro produtivo do estado e do país”. Contudo, tal soberania aponta para o completo desmantelamento da floresta e, consequentemente, para a derrocada dos próprios humanos, esses que prematuramente separaram a natureza da cultura.

O estímulo à colonização vem acompanhado da limpeza étnica e do genocídio dos povos originários, portanto, sempre se tratou do minério, em detrimento da “porra” das árvores e dos ameríndios, o que indica o racismo ambiental colonialista.

Sempre foi o minério, quando, durante o período ditatorial no Brasil, o plano era “ocupar para integrar”, com a abertura das “riquezas” da floresta ao capital externo, com a propaganda do Acre como “o filé mignon da Amazônia”, pois se trata, tal como dito pelo ditador Emílio Garrastazu Médici, nos anos 1970, de “uma terra sem homens para os homens sem terra”, repetindo o mesmo caráter colonial do “discurso do Rio Amazonas” de Getúlio Vargas, em 1940, em que informa como a “mais alta tarefa do homem civilizado” a de “conquistar a terra, dominar a água e sujeitar a floresta” para “vencer o grande inimigo do povo amazonense”.

Essa, aliás, é a própria cosmovisão dos brancos, esse “povo da mercadoria”, para falar novamente com Kopenawa, em que a visão de mundo cristã antropocentralizadora aponta que o “homem” deve ser fértil e multiplicar, “povoai e sujeitai toda a terra; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todo animal que rasteja sobre a terra”.

Para Viveiros de Castro, perigosamente citado pelo PGR Augusto Aras durante a sua sabatina no Senado Federal, o que entendemos por mundo natural é para os povos ameríndios amazônicos a multiplicidade de multiplicidades intrincadamente conectadas, portanto, entidades políticas. O desmatamento e as queimadas na Amazônia, em conjunto com a grilagem de terras a exploração ilegal de madeira e de outros recursos naturais, posto serem ligados ao ataque à cosmovisão desses povos, vincula-se diretamente ao aumento de atos de violência contra povos indígenas, comunidades tradicionais e, igualmente, contra os movimentos sociais, as ditas “ONGs”, culpadas equivocadamente por Jair Bolsonaro pelo aumento das queimadas e por tantas outras coisas.

Agora, se o fim da Amazônia é e sempre foi por causa do minério e das águas, “este outro ouro”, devemos ferozmente sonharmos juntos esses outros sonhos, os dos povos autóctones de lá, para os quais o mundo já acabou tantas vezes. “Não queremos morrer de novo”, disse certa vez o yanomami Davi Kopenawa, autor do célebre livro, escrito em conjunto com o antropólogo Davi Albert, “A queda do céu: palavras de um xamã yanomami”.

Somente assim poderemos pensar no fim da Amazônia como o outro fim: o fim do mundo tal como (nós) os brancos, um dia o pensamos, que constitui o nosso atual modelo de produção e consumo, deixando para trás esse passado-presente em que estamos com a cabeça “cheia de esquecimento”, em nome de um futuro do pretérito, finalmente liberados do fantasma do lapso mental ou da cegueira perante o fato de que a ecologia somos todos nós, os humanos e os não humanos, em que importa cada “porra” de árvore, cada “porra” de humano, cada “porra” de não humano!

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