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O impeachment de Dilma Rousseff deve ser chamado pelo nome: golpe

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A ex-presidenta Dilma Rousseff (PT). Foto: Roberto Stuckert Filho/PR
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Recentemente, em suas páginas oficiais, o governo Lula passou a se referir à destituição de ­Dilma Rousseff como golpe. Imediatamente criou-se um rebuliço. Vamos aos fatos. Em um processo conduzido a toque de caixa, o Congresso Nacional decidiu, entre dezembro de 2015 e agosto de 2016, que mais de 54,5 milhões de votos perderam valor e estavam prontos para ser anulados depois da condenação da então presidente da República. Dilma foi responsabilizada por um suposto crime contábil envolvendo créditos suplementares para reorganização pontual do Orçamento.

A destituição de um presidente é mecanismo previsto pelas constituições mais avançadas do mundo, inclusive a brasileira. Isso não significa, porém, que esteja totalmente protegido de interesses particulares e que não possa ser usado para tentar desestruturar processos democráticos legítimos, como o ocorrido nas eleições brasileiras de 2014. Golpes de Estado típicos, à base do uso de armamentos e do derramamento de sangue, tornam-se cada vez mais improváveis. Pode-se dizer que o que ocorreu neste início de ano no Brasil, após a eleição de Lula, com as ocupações de estradas e as invasões às casas do Executivo, Legislativo e Judiciário, foi uma tentativa, mas uma tentativa bem “fora de moda”.

Não é porque os canhões estão silenciosos que os golpes não ocorrem. Eles apenas estão longe de se limitarem a um passado belicoso. Hoje se perfazem sob um novo modus operandi. A articulação de um coup d’État no mundo contemporâneo depende mais das habilidades de persuasão das massas e do domínio da narrativa do que do conflito físico, e pode acontecer com as forças golpistas atuando por dentro de instituições da democracia.

Em agosto de 2016, Dilma foi tirada do poder depois de ser submetida a um processo de impeachment concluído nas duas casas legislativas (Senado e Câmara) e com a posterior chancela do Judiciário, como reza o rito. Isso não significa, porém, que o processo tenha sido legal. Em artigo para o The New York Review intitulado “A Kind of Coup” (“Um Tipo de Golpe”, em tradução livre), o jurista conservador Ronald Dworkin chamou de “golpes” processos de impeachment inconstitucionais que não comprovam emergência e gravidade para a sua aplicação. Valendo-se de uma boa metáfora, o maior pensador contemporâneo do direito anglo-saxão compara o uso do impeachment ao de uma bomba atômica, a fim de explicar a excepcionalidade que deve ensejá-lo.

No Brasil, a conclusão do processo de impeachment foi sucedida por alguns atos de “sincericídio” dos adversários da então presidente, que deixaram às claras as intenções por trás do discurso legalista. O senador Acir Gurgacz chegou a mencionar, depois de concluído o golpe, que a falta de governabilidade de Dilma foi o real motivo do impedimento, e reconheceu que ela não havia cometido crime. Em 2019, durante aparição no Roda Viva, da TV Cultura, o próprio sucessor de Dilma e beneficiário direto do processo, Michel Temer, chamou o ato de “golpe”.

A razão para o afastamento de Dilma, portanto, teria sido mesmo política. A recorrente justificativa da falta de governabilidade alegada para a sua destituição é um acinte, pois, no regime presidencialista, o mandato não pode ser interrompido simplesmente porque o Parlamento rompeu relações com o Executivo. E mais: ainda que a Justiça entenda que houve crime de responsabilidade, o Legislativo pode deixar de aplicar a sanção de impeachment, mas o contrário não é possível. As casas legislativas não podem condenar sem que haja a comprovação do crime doloso.

Se a política não pode servir de pretexto à subtração do mandato de Dilma, tampouco a dimensão jurídica é capaz de dar um caráter legal ao processo. A Constituição de 1988, no seu artigo 85, não indica como razão jurídica para o impeachment a mera ilegalidade ou inconstitucionalidade de atos. Para justificar o processo, é preciso “atentar contra” a Constituição, segundo texto da lei. Ou seja, uma conduta extremamente grave e dolosa.

As alegadas irregularidades contábeis usadas contra Dilma estão muito distantes disso e não fundamentam, à luz da Constituição, o afastamento de um presidente da República. Só pode haver ­impeachment se a conduta possuir a gravidade que a Constituição determina.

Mesmo diante da inexistência de crime de responsabilidade, seja na dimensão vinculada ou jurídica, o Congresso Nacional decidiu, em votações que se assemelharam a pastelões de gosto discutível, aplicar a sanção de impeachment com a complacência do Poder Judiciário, desmantelando um governo eleito com 51,6% dos votos. Por tudo isso, não há outro nome para classificar a destituição de Dilma em 2016 que não seja golpe de Estado. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1246 DE CARTACAPITAL, EM 15 DE FEVEREIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Sem rodeios”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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