O ano era 2011. Em uma noite típica de sexta-feira, uma menina de onze anos celebrava a ausência de aulas na manhã seguinte porque passaria os próximos 55 minutos em frente à TV, imersa em um universo cujo astro era a figura mais inspiradora da televisão, Glória Maria.
A menina, que cresceu pobre numa periferia na região metropolitana de Salvador, não conhecia nenhuma pessoa que havia se aventurado além das fronteiras – salvo a patroa de sua mãe. Não havia uma partícula de esperança que a fizesse sonhar com o mundo, exceto os 55 minutos das sextas-feiras em que punha-se ante a televisão para ver Glória Maria. A primeira jornalista a entrar ao vivo na era à cores. A mulher que preencheu incontáveis passaportes. Que esteve presente em diversos dos momentos mais marcantes da história recente do Brasil e do mundo. E que, sem que sequer soubesse, mudou para sempre a vida de uma menina negra da Bahia.
A menina, a última a adormecer nas sextas-feiras, deitava-se somente após a vinheta de encerramento do Globo Repórter. Ela escrevia com uma caneta preta os nomes das cidades que Glória visitava em suas reportagens – e sonhava que um dia as visitaria. “Se ela podia, eu poderia”. Mal sabia que, em cada casa onde residia uma menina negra (às vezes chamada de falastrona e sonhadora), residia o mesmo anseio que a fazia estar ali, todas às sextas-feiras, diante da televisão.
Sigo com lágrimas de consternação e felicidade, por saber que não fui a única. Cada uma de nós é o legado de Glória Maria
Glória Maria tocava o íntimo de cada uma de nós, aquelas que brincavam com as escovas de cabelo ante os espelhos dos quartos, aquelas que jamais viram suas mães, igualmente negras, em viagens e espaços tão belos, em uma época na qual ela, grandiosa, entrevistava astros como Michael Jackson e Freddie Mercury.
Glória Maria nutria nossos corações com o alimento mais precioso para aquelas que foram subjugadas e reduzidas ao longo dos séculos: a possibilidade. A mulher fascinante e feliz, dona de um bom-humor inconfundível, comprovava todos os dias que a excelência e a felicidade negra são direitos que podemos exercer. Afinal, antes de tudo, Glória era uma mulher que viveu sob as suas próprias definições e amou com toda a sua alma, abraçando a experiência humana e nos revelando um mundo de infinitas possibilidades.
A menina negra cresceu, completou 22 anos, tornou-se jornalista e riscou alguns dos nomes das cidades que escreveu com a sua caneta preta. A menina negra, mesmo ontem, disse a seu pai: “Estou prestes a fazer mais um visto, precisarei de outro passaporte, exatamente como Glória Maria”. A menina negra, hoje, abraça a mulher que se tornou aquilo que já gestava dentro de si. Existe e é porque Glória Maria tão grandiosamente foi.
Como dizia a memorável autora Maya Angelou: “Toda vez que uma mulher se defende, sem nem perceber que isso é possível, sem qualquer pretensão, ela defende todas as mulheres.”
Quando Glória defendeu os seus sonhos e viveu, na intensidade de um astro luminoso, sem sequer perceber, ofertou a sua luz a tantas, a todas. Glória não me conheceu, mas foi e sempre será uma das razões pelas quais aquela menina pobre acreditou que um dia poderia tornar-se uma jornalista. Sigo com lágrimas de consternação e felicidade, por saber que não fui a única. Cada uma de nós é o legado de Glória Maria.
Que descanse em poder nossa orixá brasileira da comunicação. Que os ancestrais a recebam em festa no Orum.