“O grande e terrível mundo”.
Gramsci.
Essa era uma expressão que o filósofo político Antonio Gramsci usava frequentemente, tanto no contexto político quanto familiar, coloquial.
Retirei-a da biografia dele, escrita por Angelo d’Orsi, publicada pela editora Expressão Popular.
Quantas vezes não nos deparamos com essa sensação?
Para alguns, como as e os transexuais, ela se aplica à medida: pelo décimo quarto ano, consecutivo, o Brasil foi o país que mais assassinou transexuais no mundo!
Mais um recorde pavoroso, no país do genocídio da Covid e dos Yanomami.
Mas as trevas jamais vencem a luz, por mais brutais e violentas que aquelas sejam: o mesmo Brasil terá, pela primeira vez, na Câmara Federal, uma bancada transexual, composta pelas deputadas Duda Salabert (PDT/MG) e Erika Hilton (PSOL/SP).
A propósito, o Ministério da Igualdade Racial acaba de lançar formulário para currículos de pessoas trans, o que é uma inovação absoluta no país.
No Congresso, a bancada negra também cresceu, bem como a feminina.
Na última edição do Fórum Social Mundial, que se realizou em Porto Alegre, de 23 a 28 de janeiro do corrente ano, a participação de negros e negras; lésbicas e gays; mulheres e transexuais foi muito muito superior às edições anteriores.
Os dados apresentados no Fórum, porém, registram um verdadeiro cataclismo pelo qual o Brasil e a América Latina passaram: em 2022, a Amazônia sofreu as maiores queimadas dos últimos 10 anos; 90% delas ocorreram em terras indígenas; dados apurados dão conta de que a mineração mata dez vezes mais do que qualquer outra atividade.
Ao lado disso, segundo a representante da Organização Mundial da Saúde, com a Covid (e os governos de direita, acrescento) a pobreza regrediu aos níveis de 27 anos atrás na Região das Américas; de fato, mais de 8 milhões de pessoas encontram-se em insegurança alimentar; no que tange à participação das mulheres no mercado laboral, o retrocesso foi de 18 anos na América Latina e Caribe; quanto aos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio, da Organização das Nações Unidas, 70% das metas ali estabelecidas não foram atingidas pelos países; no Brasil, aumentou a mortalidade materna, de ribeirinhos e ribeirinhas – e em todo o meio rural; 90% dos países com menos de 90% de vacinação são da Região.
Entretanto, também houve boas notícias e ótimos conceitos, como: “Políticas não devem ser feitas para as pessoas, mas com as pessoas” (ainda da representante da OMS no Brasil, a qual também lembrou que o modelo de atenção centrado nos médicos é limitante).
Os debates que congregaram a população de rua também foram muito interessantes, ao lembrarem que o maior violador dos direitos da população de rua é o próprio Estado; que a população de rua é população negra desterritorializada, principalmente pela Lei de Terras de 1850, que lhes impediu, na prática, o acesso à terra; e, não menos importante, que só quem vai a favor da correnteza é peixe morto…
Em meio a isso tudo e à leitura de Gramsci, ocorreu-me um conceito italiano: “non far pesare”. A tradução livre seria: não fazer pesar. Ou seja, fazer algo com leveza, fazer o bem de forma que os beneficiários não percebam sequer e não se sintam posteriormente obrigados a retribuir, seja da forma que for.
Trata-se, talvez, do centro do conceito de elegância, que foi raptado pelo capitalismo, reduzindo-o a algo meramente estético, que a elegância transcende amplamente.
Sem dúvida, é uma contribuição da Itália à civilidade, como o sentimento e o conceito de saudade são brasileiros.
Pensei naquela concepção particular de relacionamento dos italianos, ao lembrar como muitos dos imigrantes italianos a trouxeram para o Brasil e a aplicaram tanto em termos políticos, coletivos; como privados, familiares.
Na biografia de Gramsci, em apreço, o princípio do “não pesar” é claramente exposto por correligionário dele: “Gramsci devia muito de sua influência sobre todos nós à sua capacidade de corrigir nossos erros, para nos ajudar quando estávamos diante de problemas maiores do que nós mesmos, e tudo isso ele fazia não de modo autoritário, mas com longos e abrangentes argumentos e com muita compreensão. O operário não se sentia envergonhado nem inferior; diante dele revelava sua alma.”
O clima de discussão, de liberdade, de aprendizagem, sem dúvida conduz ao enraizamento cultural, esteio de toda e qualquer nova situação política.
Dessa forma, em “Dostoiévski – os anos da provação”, de Joseph Frank (editora EDUSP), lemos a respeito da São Petersburgo pré-revolucionária: “Aqui em São Petersburgo’, escreveu Kávelin (o historiador K.D.Kávelin), em princípios de 1856, ‘a opinião pública amplia cada vez mais seus interesses. Já não é possível reconhecer os [antigos] pavilhões militares, o porrete, a ignorância. Fala-se de tudo, tudo é discutido em toda a parte; às vezes bobagens, mesmo assim discute-se e, por conseguinte, estuda-se’. Sob o estímulo dessa estonteante sensação de liberdade (ainda muito relativa, é claro), 150 novos jornais e revistas apareceram na Rússia entre 1856 e 1860.”
Portanto, sem medo de discutir, divergir ou convergir.
O conhecimento é mesmo feito de muitos conheceres, vivências e experiências, podendo ser orais ou escritas, factuais ou sensoriais.
Experimentemos, pois, misturar mais ética e estética. Poderá resultar boa combinação.
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