Mariana Rosa

Mulher com deficiência, mestranda da Faculdade de Educação da USP, cofundadora do Instituto Cáue e integrante do Coletivo Feminista Helen Keller.

Opinião

Segregar pessoas com deficiência, nunca mais

Para que essa página seja definitivamente deixada pra trás, precisamos que os parlamentares se comprometam

Marcelo Camargo/Agência Brasil
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A deficiência tem sido percebida como uma coisa triste ou ruim, como algo infeliz que pode nos acontecer, uma tragédia ou uma falha. Minha experiência até aqui tem sido majoritariamente sobre investidas que visam “consertar” o corpo de minha filha para torná-lo mais “normal” e menos “deficiente”. Ainda que eu também seja uma mulher com deficiência, minha condição é considerada mais aceitável. Enquanto minha filha, que tem 9 anos, é lida como uma criança ineducável. As mensagens que nos atravessem, frequentemente, afirmam a deficiência como errada e indesejável. Como se o corpo sem deficiência fosse o padrão ouro a ser perseguido, o ideal no qual devêssemos nos inspirar.

Isso faz com que, muitas vezes, uma criança com deficiência não tenha com quem conversar sobre sua experiência vivida, seja porque é desacreditada, seja porque está imersa em um universo permeado de abordagens que se direcionam a ela para dizer qual é “o tipo certo” de criança com deficiência: aquela que precisa ser vista tentando consertar a si mesma.

O direito de minha filha acessar a escola é muito recente. Historicamente, nossa sociedade tem mais experiência em segregar e excluir do que incluir. Se tivesse nascido há uns 30 ou 40 anos, ela provavelmente estaria reclusa em casa, como tantas pessoas com deficiência que não tiveram direito à escola e à vida pública.

Trinta anos é um piscar de olhos quando se pensa numa perspectiva histórica. Trinta anos em que as escolas vêm sendo pressionadas a avançar por muitas razões, inclusive porque as pessoas com deficiência começaram a acessar esses espaços. Ao chegarem outros corpos, outras formas de expressão, outras maneiras de estar no mundo, a escola tem precisado se atualizar. Esse processo não está acabado, mas só começou porque as pessoas com deficiência puderam se mover do campo doméstico para a vida pública.

Minha filha, hoje, está na escola. E porque ela lá está, a escola está se transformando: seu projeto pedagógico, suas tecnologias, sua arquitetura, seus tempos, suas relações. Quais dessas mudanças (estruturais, pedagógicas, tecnológicas e de percepção de mundo) se instalariam se minha filha não estivesse na escola? Quais transformações ficariam pelo caminho? Nenhuma sociedade deveria abrir mão de ter a contribuição dessas crianças e jovens para refazer o mundo a partir da escola.

Os espaços segregados foram a única resposta às pessoas com deficiência e suas famílias por muito tempo, até a década de 70, 80, quando o Estado não tomava pra si essa responsabilidade. Eles foram acolhimento num tempo em que a alternativa a isso era nada. Mas esse tempo passou. A legislação hoje responsabiliza o Estado por garantir o acesso à escola, à saúde, à assistência social. E se isso não tem funcionado como deveria, as razões não têm qualquer relação com os corpos com deficiência.

Minha filha, hoje, está na escola. E porque ela lá está, a escola está se transformando

Isso decorre de um projeto que não deixa que o dinheiro público chegue até a educação, que o recurso do Fundeb encontre a escola, que aconteçam os investimentos nas salas de recursos multifuncionais e na implementação do serviço de atendimento educacional especializado, dispositivos de uma escola inclusiva. É esse projeto que lota as salas de aula, não paga salários decentes aos professores, não investe em sua formação.

A escola precisa melhorar pra todos nós, no entanto, por que aos estudantes com deficiência pedimos que se retirem? Quais interesses sustentam a segregação e fazem com que as pessoas com deficiência e suas famílias dependam de filantropia? Essas instituições fazem um trabalho que é estimado por muitas famílias, mas seus serviços não são de escolarização, são de outra natureza e, portanto, não podem ser uma alternativa à escola. Nem do ponto de vista legal, nem do ponto de vista ético.

A supremacia dos corpos sem deficiência faz vocês aqui presentes acreditarem que a escola é o lugar naturalmente preestabelecido para vocês. No seu privilégio de pessoa sem deficiência, você não precisa ouvir pessoas com deficiência ou aprender com elas sobre outros modos de ser estar no mundo, implementar outras práticas, seja na escola, seja no mundo. Isso faz com que as pessoas com deficiência sejam marcadas pelo isolamento imposto pela falta de acessibilidade material, social e cultural. Vocês, sem deficiência, entendem que a segregação é caminho porque não querem ter que mudar suas vidas.

Eu gostaria de me dirigir às crianças com deficiência que estão aí hoje. Estou na tela mas vejo vocês. Não estou falando de vocês, nem para vocês. Estou falando com vocês. Quero que saibam que há pessoas competentes e aguerridas se dedicando a implementar uma escola boa para todos. Também quero lhes dizer que a vida de crianças com deficiência é melhor menos porque puderam acessar terapias que prometem que possam andar, falar ou ter seu corpo considerado normal, e mais porque tiveram acesso à moradia, com boas condições sanitárias, com alimentação adequada, tiveram direito ao cuidado. Tiveram acesso à escola.

A segregação é uma ilegalidade. Um crime. Para que essa página seja definitivamente deixada pra trás, precisamos que os senhores parlamentares se comprometam. Temos a responsabilidade de deixar um legado melhor do que aquele que recebemos. Muitos dos parlamentares que aqui estão defendendo a segregação viveram essa realidade na década de 70. Não é possível que os senhores trabalhem para reproduzir o que conheceram. Os senhores podem mais que isso.

Texto apresentado na 2ª audiência realizada no Senado Federal, para debater o papel das instituições chamadas especializadas, que são instituições segregadas para pessoas com deficiência. A pauta tem sido liderada pelos senadores Izalci Lucas, Flávio Arns e Damares Alves, numa perspectiva conservadora e discriminatória, na medida em que assumem que crianças com deficiência não devem estar na escola comum e sim segregadas, sem acesso ao currículo.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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