Daniel Dourado

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Médico e advogado sanitarista, pesquisador do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da USP e do Institut Droit et Santé da Universidade de Paris.

Opinião

Secessão sanitária

Se o Congresso reconhecer a necessidade de uma gestão nacional paralela, seria melhor responsabilizar Bolsonaro e tirá-lo logo da cadeira

Jair Bolsonaro
Bolsonaro tem tido bastante sucesso ao jogar a culpa dos infectados e mortos pela Covid-19 nas costas de governadores e prefeitos. Foto: Evaristo SA/AFP Bolsonaro tem tido bastante sucesso ao jogar a culpa dos infectados e mortos pela Covid-19 nas costas de governadores e prefeitos. Foto: Evaristo SA/AFP
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O governo Bolsonaro conseguiu emplacar o cada um por si no SUS. Estados e municípios se organizam para combater a Covid-19 sem apoio do governo federal. Mas, para que isso não traga prejuízo ao sistema nacional de saúde, é preciso articulação.

O projeto começou a ficar claro logo no início da pandemia. Desde abril do ano passado, a grande aposta de Bolsonaro – ao lado do famigerado “kit Covid” – foi se desresponsabilizar da condução do país, jogando todo esse fardo sobre governadores e prefeitos. A epidemia não havia completado dois meses no Brasil e já era claro que o governo federal não adotaria as medidas sanitárias necessárias para conter a disseminação do vírus na população e que, pelo contrário, agiria para acelerá-la, acreditando da falácia da imunidade de rebanho sem vacina.

Foi nesse cenário que o STF julgou duas ações que pediam a confirmação da competência de estados e municípios para fazerem o que precisa ser feito: imposição de distanciamento físico, quarentena, restrições de atividades de ensino, de comércio etc. E nem poderia ser diferente, a Constituição e a legislação sanitária atribuem aos governos autonomia para cuidar da saúde dos cidadãos em seus territórios. O que o Supremo fez foi dizer claramente que estados e municípios têm que atuar independentemente do negacionismo assumido pelo governo federal e, sobretudo, que o presidente da República não pode atrapalhá-los.

Essa foi a deixa para a construção de um dos mantras bolsonaristas na pandemia. O STF nunca proibiu o governo federal de agir e nem poderia ter feito isso. Mas essa mentira foi repetida tantas vezes que chegou ao ponto de motivar a publicação de uma nota oficial do Supremo no começo deste ano. Não adiantou e, nesta semana, o ministro Gilmar Mendes abandonou a formalidade e desmentiu diretamente uma publicação do ministro Ernesto Araújo nas redes sociais. Provavelmente o efeito será semelhante ao da nota.

Sem uma coordenação nacional, há risco de se formarem ilhas de pessoas imunizadas enquanto o vírus continua circulando na maior parte do País

O problema é que essa estratégia que Bolsonaro criou unicamente para seu interesse político é muito deletéria para a gestão da crise sanitária e pode deixar efeitos graves na estrutura do sistema de saúde. O SUS é concebido a partir de um complexo arranjo institucional para dar conta do imenso desafio que é viabilizar um sistema de proteção social no modelo de federalismo brasileiro, que tem 27 gestores regionais (estaduais mais o DF) e 5.570 municipais. O papel de coordenação nacional é fundamental para viabilizar a prestação de ações e serviços de saúde com equidade.

Isso ficou bem evidente na omissão do ministério da Saúde na elaboração da estratégia de vacinação. Vale lembrar que o plano de vacinação foi feito às pressas e só foi apresentado em dezembro – com 10 meses de epidemia – por determinação do STF. E que, em outra ação judicial, o Supremo reiterou que governos estaduais e municipais podem comprar vacinas sem esperar a distribuição pelo governo federal, numa decisão em que a premissa é o possível descumprimento do plano de vacinação pelo Ministério da Saúde. Seria inusitado se não fossem tempos bolsonaristas.

Por isso, governos estaduais e municipais têm tentado garantir vacinas além das que deveriam receber pelo PNI. O clima é de desconfiança, os gestores não acreditam na capacidade e no interesse do governo federal em assegurar imunizantes para toda a população. A questão aí é que, sem uma coordenação nacional, há risco real de se formarem ilhas de pessoas imunizadas em algumas regiões enquanto o vírus continua circulando na maior parte do País, sobretudo nas regiões com menos recursos.

Então, governadores agora pedem ao Congresso que viabilize a formação de um comitê de crise para gerenciar a expansão da vacinação e para apoiar as medidas de saúde pública e a ampliação de leitos hospitalares. Na prática, vai funcionar como uma resposta dos governos estaduais à desarticulação promovida pelo governo federal, assumindo o papel que deveria ser do Ministério da Saúde. O ministro Eduardo Pazuello já assumiu que não cumpre sua obrigação de coordenar esse esforço porque Bolsonaro não deixa.

A ideia é boa. Mas se o Congresso reconhecer a necessidade dessa espécie de gestão nacional paralela, seria melhor responsabilizar Bolsonaro pelos crimes cometidos e tirá-lo logo da cadeira que infelizmente ainda ocupa.

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