Yasmin Morais

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Escritora, jornalista em formação pela Universidade Federal da Bahia com mobilidade acadêmica na Université Toulouse 2 Jean Jaurès, integrante do Centro de Estudo e Pesquisa em Análise do Discurso e Mídia (CEPAD) da UFBA e fundadora do projeto Vulva Negra.

Opinião

Se o monstro de Frankenstein fosse uma mulher…

Entre o conservadorismo do público e a crítica feminista, o que o enredo do filme ‘Poor Things’ (2023) nos diz sobre o olhar masculino em torno da descoberta sexual das mulheres

Imagem: Divulgação
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As discussões sobre liberdade sexual estão imersas nas perspectivas hegemônicas — sejam elas as de mercantilização da sexualidade feminina ou de um discurso sobre liberação sexual que ignora a falta de direitos sexuais e reprodutivos ou os altos índices de estupro e outras violências em países do Sul global. Dentro dessa concepção, a dimensão sexual asséptica, essa que se afirma a partir de um olhar masculino sobre o sexo, na ausência do corpo-espera e no excesso do corpo-máquina, ignorando as fases do ciclo reprodutivo das mulheres e suas consequências no desejo, na execução, na descoberta e no próprio desenvolvimento da sexualidade, ganha força e afeta as experiências da geração atual.

Como um efeito rebote das décadas de hipersexualização e pornificação da cultura, muitos integrantes das gerações Y e Z tendem a se mostrar contrários ao excesso de cenas de sexo ou conotações eróticas em produções audiovisuais, levando indivídios mais velhos a afirmar que a geração atual é “sexualmente conservadora”. Quando, na verdade, seguimos encabeçando índices de consumo de pornografia e criação de conteúdo adulto. Seriam os jovens menos desejantes ou a sua sexualidade estaria sendo direcionada a experiências digitais e mercantilizadas, aprofundando os lucros no mercado do sexo e nos distanciando do contato pele na pele?

No centro desse debate, o novo filme do diretor grego Yórgos Lanthimos, Poor Things (2023), se tornou polêmico ao trazer cenas de sexo pouco-conservadoras protagonizadas por atores A-list como Emma Stone e Mark Ruffalo. Entretanto, nesta crítica, a maior questão em torno do longa-metragem não será por causa do conservadorismo de uma audiência mais jovem ou do repúdio às cenas de sexo, mas sim em razão do discurso construído pela mídia em torno de sua história, pintando a obra como uma ode à descoberta sexual feminina e sua personagem principal como o retrato do que as mulheres seriam, se não fossem socialmente tolhidas. Neste texto, ofereço uma crítica específica ao olhar midiático sobre a obra.

O filme, inspirado no livro homônimo de Alasdair Gray, publicado em 1992, conta a história de Bella Baxter, uma jovem grávida e suicida que após ter seu corpo encontrado por Godwin Baxter, tem o cérebro substituído pelo de seu bebê, se tornando uma das criaturas do cientista. Os visuais estonteantes, inspirados na estética steampunk, no gótico, na era vitoriana e no surrealismo de artistas como Salvador Dalí, seduz e deslumbra a partir de sua própria concepção — como uma pequena caixa de música vintage, um mundo arquitetado por Gaudí. A paixão ocasionada por sua belíssima composição estética e pela atuação vívida de Emma Stone (Bella) nos conduz àquilo que seria a etimologia da palavra — nos fazer deslumbrados, observando alheios aquilo que fica nas entrelinhas. Afinal, o Diabo está nos detalhes.

Apesar de seu nascimento ser uma clara alusão à ânsia sensorial pela descoberta do mundo e a fantasia de esboçar uma postura corajosa face ao desconhecido, não se pode perder de vista que a personagem principal, aclamada pela crítica como a representação de uma mulher em seu caminho para a emancipação, é uma criatura com a consciência de um bebê. Ela, uma “mãe de si mesma” que não deixa de sair da cabeça de um homem, como no mito grego do nascimento de Atena. A descoberta sexual de Bella se dá através da masturbação, a personagem toca o próprio corpo e descobre maneiras de “alcançar a felicidade” ainda em público, com o entusiasmo característico de quem não foi alcançado pela norma social.

Ainda durante o seu processo de desenvolvimento, Bella se vê como uma criatura de outrem, mas tenta exercer sobre si alguma autonomia, despertando sexualmente ao passo que é tolhida e tratada como um experimento, até que o advogado Duncan Wedderburn cruza o seu caminho. A essa altura, a descoberta da personagem que seguia o seu curso próprio é afetada por um assédio sexual. Após o convite para uma odisseia pelo mundo, Bella decide que precisa viver a sua própria aventura longe dos olhos de Godwin e de seu noivo, Max McCandles.

Somos conduzidos a pensar que as primeiras decisões de Bella quanto ao seu período com Duncan foram ponderadas, o corpo adulto de Emma Stone nos faz esquecer em alguns momentos que a personagem tem o cérebro de um bebê em desenvolvimento e que termos como consentimento, assédio sexual, estupro, aliciamento e outros ainda não fazem parte de seu repertório. Aqui, questiono: como esse processo pode ser pintado como libertador, quando ela sequer possui noções básicas de consentimento ou agência consciente sobre si mesma?

O que pode ser compreendido como a fase na qual ocorre o descolamento dos pais e o início da descoberta pessoal, na história da personagem ganha uma característica menos libertária, pois Duncan introduz Bella à sexualdiade a partir das suas próprias expectativas sexuais, deixando claro que o seu objetivo é usufruir da personagem enquanto ela lhe for interessante. Bella, como em um retrato agridoce da vida real, é rapidamente capturada da descoberta espontânea de seu corpo pela influência de um “adulto” que direciona os seus desejos sexuais à própria satisfação.

A postura da personagem, que sob um olhar conservador pode se assemelhar à de uma ninfomaníaca, nada mais é do que o caráter curioso de uma criança presa no corpo de uma mulher que busca desvendar as possibilidades de sua fisiologia na busca pelo prazer, mas que se vê fisgada pela fantasia masculina sobre o seu corpo e sua sexualidade. Bella, com o olhar científico que herdou de seu criador, encara a si mesma como um grande experimento, exercendo o seu ímpeto curioso sobre o mundo, mas sendo a todo momento interpelada por homens que desejam aproveitar-se da sua falta de experiência.

Ainda em sua odisseia com Duncan, Bella tensiona papéis de gênero, saindo todos os dias, conhecendo outras pessoas e fazendo com que o advogado se depare com a sua própria mediocridade, seu desespero e sua masculinidade teatral. Em uma tentativa mal-sucedida de recobrar o controle sobre a personagem, Duncan a “captura” novamente e a conduz a um cruzeiro, na esperança de que, mantendo-a no mar, lhe deixaria aprisionada.

Entretanto, nesse arco, Bella se depara com a sua segunda experiência autêntica — o interesse pela literatura filosófica. Ao passo que a personagem conhece novas pessoas e se aprofunda nos livros que lhe despertam interesse, menos interessada parece estar nas relações sexuais com Duncan. Conforme o seu vocabulário se aprofunda, Bella inicia questionamentos sobre a vida e a sociedade. Durante o seu processo de retomada a partir do conhecimento, a personagem vai tornando-se desinteressante ao olhar do homem que a sequestrou. Como todo o filme está envolto em uma aura de comicidade que é aprofundada pela postura ingênua e destemida de Bella, muitos deixam escapar os momentos de desamparo, abuso e experiências traumáticas às quais a personagem é submetida, que vão desde a sua chegada indesejada ao navio até o momento em que ela se depara com a crueldade do mundo.

Ao chegar em Paris, Bella se prostitui pela primeira vez sem saber ao certo o que está fazendo, em uma cena que sem o alívio cômico facilmente teria ares de estupro, e ao retornar a Duncan descobre que “fez a pior coisa que uma mulher pode fazer a si mesma”, sendo xingada e abandonada pelo homem, que se sentiu perturbado ao conceber a ideia de que seu corpo não mais lhe seria um “item privado”. Após se ver sozinha e roubada, a personagem recorre à prostituição. Onde está a liberdade sexual feminina no completo desamparo? Eu questiono.

Apesar de algumas sacadas interessantes, como a cafetina que diz “muitos homens preferem o sexo quando sabem que as mulheres não querem fazê-lo” e que “há uma razão pela qual não se pode deixar uma prostituta escolher”, o roteiro peca ao não trazer uma terceira perspectiva sob a qual poderia dar luz a um debate mais interessante. Nesse ponto, a história nos oferece apenas duas possibilidades: 1) o conservadorismo que rechaça as prostitutas e 2) a defesa da cafetina em torno do potencial emancipador da estadia no bordel. 

Uma abordagem mais robusta ocorreria, por exemplo, se o questionamento de Bella sobre as prostitutas não poderem escolher fosse aprofundado ao invés de apenas suprimido por uma aceitação rápida e o silenciamento das tensões. Além disso, paira no ar uma certa indiferença, como se a personagem houvesse “gostado” do sexo violento com um dos homens no bordel. Há a construção de uma falsa leveza, ainda que em uma cena Bella narre estar começando a se sentir vazia. Nesse ponto, Yórgos perde a chance de construir uma crítica muito mais profunda do que apenas alertar sobre o “fantasma do conservadorismo”, em especial com a introdução da personagem Toinette, uma jovem negra e comunista que leva Bella às reuniões da juventude socialista.

Apesar de arcos interessantes e de uma crítica consciente à falsa moralidade na sociedade ocidental, o filme peca ao cair no mesmo limbo que grande parte das obras dirigidas por homens quando abordam mulheres e sua descoberta sexual — o desenvolvimento da “jornada da heroína” a partir de experiências sexualmente degradantes. A personagem vivencia uma descoberta sexual plastificada, que não envolve menstruação, incômodos nos seios ou questionamentos sobre outras características do corpo. Há, sobretudo, uma vagina sempre pronta a ser penetrada. Bella é como um corpo de faz de contas, vivenciando uma descoberta sexual ambígua e um tanto artificial.

Como exemplo, a relação da personagem com Toinette é lançada na trama sem nenhuma espécie de desenvolvimento satisfatório, ainda que tenha sido um passo importante descobrir que também há prazer relacionando-se com o corpo de outra mulher. O momento sexual de ambas se resume a uma cena e poucos questionamentos, como se a relação íntima com outra mulher fosse menos relevante para o processo. 

Como interlocutora feminina, Toinette foi a única a abordar aspectos como gravidez e maternidade, trazendo à protagonista alguns questionamentos em torno da temática. Se melhor explorado, esse contexto poderia dar outro tom à experiência de ambas, aprofundando-a e dando contornos mais interessantes. No bordel, Bella aprende muito mais sobre como se dá prazer aos homens do que como o seu próprio corpo reage ao prazer, sendo que durante poucas cenas sexuais ele é de fato protagonista.

Ao retornar para casa, a personagem finalmente parece estar mais consciente de seu estado e traz consigo curiosidade sobre o seu nascimento. Após os fatos que se sucedem, Bella descobre que o antigo eu que habitava o seu corpo — Victoria — havia optado pelo suicídio em razão de um casamento opressor, no qual uma das grandes causas de sua insatisfação era a gravidez. Em uma tentativa quase escrachada de se mostrar progressista, o roteiro adiciona um vilão que deseja extrair o clitóris da personagem — como se a sua descoberta sexual já não tivesse sido quase inteiramente guiada pela fantasia e os desejos dos homens. O vilão é derrotado, a personagem conclui o seu arco no mesmo lugar em que o iniciou, mas vivenciando a sua própria versão de um “felizes para sempre”, com todos os elementos e pessoas queridas que remanesceram em sua história.

A obra de Yórgos pode ser percebida como uma crítica ao conservadorismo social e ao temor do sexo no cinema sentido pelas gerações atuais, mas certamente não é uma crítica feminista e tampoucou uma ode à liberdade sexual. Bella vivencia, no final das contas, a mesma trajetória sexual que a maioria das mulheres. Ser lançada ao mundo sem nenhuma espécie de educação sexual, ser abordada por homens que lhe tocam indevidamente e aprender sobre sexo à imagem e à semelhança do desejo masculino, até que assimila seus traumas e consegue produzir algo minimamente original de sua vida a partir disso. A história pouco nos faz sonhar sobre a liberdade sexual feminina, nos apresentando um caminho que já conhecemos bem — com exceção dos cenários surrealistas e das mangas bufantes.

A minha crítica não versa sobre a magnificência da obra de Yórgos, sua profundidade filosófica, a força da natureza que é o desejo de Bella pela experiência, ou sobre as alegações de que o filme não poderia ser acusado de male gaze por ter Emma Stone como uma de suas produtoras, mas sim, busca desafiar a noção rasa de que a obra traz algum ineditismo na seara da emancipação sexual feminina. 

O longa de Yórgos pode funcionar como crítica à sociedade dos bons costumes e como uma canção para a ambiguidade humana, mas não funciona como crítica feminista. Bella é como Atena, nasce da cabeça de um homem e vivencia as suas experiências no mesmo ritmo que homens fantasiam ocorrer a experiência das mulheres. Afinal, para eles sempre amadurecemos depressa, não é mesmo?

O filme Poor Things (2023) é melhor aproveitado se assistido como se estivéssemos buscando o deleite, uma nova perspectiva estética e o prazer da contemplação, se nos permitirmos ser atravessados e envolvidos pela força da história — muito mais do que estar em busca de alguma “representatividade feminista”.

Ao final, o cartaz promocional feito pelo designer polonês Aleksander Walijewski, no qual a cabeça da personagem está sendo conduzida para longe de seu corpo pelos cinco homens que influenciaram a sua história, me parece dizer muito mais do que cada take de sexo a que assistimos. Bella, a personificação da beleza feminina e do desejo em seu estado mais autêntico, foi capturada pelas relações com o seu “primeiro marido”, o seu criador, o seu tutor, o advogado, o primeiro homem que a penetra no bordel, todos esses, emaranhados em uma teia, tentando levar cada um consigo uma parte da mulher que eles pensam ter feito. 

Talvez, a genialidade de Yórgos esteja aí. Nessa mensagem implícita de que Bella não é a mulher ideal, mas sim a mulher possível, a mulher que resta em um mundo no qual somos lançadas aos lobos sem conhecimento prévio. A mulher é o que ela faz de si mesma a partir dos escombros. Como disse a personagem Swiney, “precisamos vivenciar tudo. Não apenas o que é bom, mas também a degradação, o horror e a tristeza. Isso nos torna completos, nos torna pessoas de substância. Não crianças inconstantes e intocadas. Assim, poderemos conhecer o mundo. E quando conhecemos o mundo, o mundo é nosso”.

Bella se torna dona da casa na qual foi desenvolvida, ingressa em um curso de Medicina e se vê de fato no comando da sua própria narrativa, enquanto aparentemente experimenta um relacionamento respeitoso com McCandles e Toinette. Como tantas mulheres, a personagem consegue fazer algo interessante de si mesma após se libertar das teias que tentavam levar a sua cabeça para longe. 

Com o seu filme, Lanthimos elucidou uma das grandes perguntas que tenho me feito desde que reli o clássico de Mary Shelley: “se o monstro de Frankenstein fosse uma mulher, ele seria abusado, prostituído e encontraria um suposto empoderamento após tudo isso?”. Hoje sei que a resposta seria “sim”, pois temos Bella Baxter. Afinal, em uma sociedade pautada na ordem patriarcal, a ingenuidade feminina encontra muito mais violência do que açúcar.

Mas, para adoçar esta crítica tão ácida, eu diria que, no final de tudo, Bella conseguiu refazer a si mesma de modo profundamente criativo e original, se tornando uma pessoa de muita substância. Pois o belo e o horror, o açúcar e a agressividade, tudo esteve em seu caminho de autoinvenção. 

Bella Baxter me inspira.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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