Opinião

Se Bolsonaro não for julgado e condenado, a justiça se transformará em quimera

O que vivemos sob a família do presidente foi bem definido por Ailton Krenak em ‘O sistema e o antissistema’

Foto: EVARISTO SA / AFP
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“A primeira regra para se atingir a bondade é esta: pense apenas no aperfeiçoamento de si mesmo, e faça-o sem qualquer pensamento quanto a vir a ser elogiado pelos outros.” – Sabedoria chinesa

Sinto muito José Simão e Sensacionalista, mas este furo é nosso: a máfia italiana entrou em polvorosa com a ida dos irmãos Bolsonaro à embaixada da Itália, para solicitar a cidadania italiana.

O mínimo que se ouve no Sul da Bota é: “concorrência desleal!”.

De fato, não se tem notícia de qualquer mafioso que tenha “adquirido” 51 imóveis com dinheiro vivo, até mesmo porque na Itália essa prática, “per se”, é indício de delito e requer investigação automática.

Até para os “elásticos” padrões de Cosa Nostra, Camorra, Ndrangheta e Sacra Corona Unita, respectivamente as máfias da Sicília, da Campanha (Nápoles), da Calábria e da Apúlia a compra de 107 imóveis, sendo 51 em contante, configura grave falta ética, passível de colocar em risco todo o edifício criminoso daquelas organizações.

Entre as “famiglias”, não se tem notícia de tal descalabro.

O recurso à Organização Mundial do Comércio (OMC), por prática concorrencial desleal, chegou a ser aventado, entre um “cannoli” e outro, mas o bom senso prevaleceu: as alegações contrárias à ida a Genebra foram desde a necessidade de manutenção de um mínimo padrão moral (do qual a organização genebrina estaria alheia) até a prevalência de métodos diretos de resolução de conflitos, sem que se tenha minorado os riscos inerentes que vitimaram a vereadora Marielle Franco, Anderson Gomes, Adriano e Bebianno, entre outros.

Se Andrea Camilleri estivesse vivo, certamente teríamos mais um episódio de investigação do impagável comissário Montalbano, cujo título não resisto em tentar perscrutar: “Quando as milícias afrontaram a máfia e como esta expulsou aquela”.

A propósito de como a máfia poderá reagir à chegada das milícias, é útil consultar a obra de Massino Ciancimino e Francesco La Licata “Don Vito – as relações secretas entre Estado e máfia” (editora Feltrinelli), que nos ilustram com o seguinte precedente histórico: “De 1989 a 1993, a Itália foi atravessada por uma onda de violência mafiosa de intensidade e ‘qualidade’ nunca vistas antes…O máximo da violência destrutiva da máfia ocorreu entre os verões de 1992 e 1993, quando Totó Riina assume o papel de estrategista de uma inédita versão identitária de Cosa Nostra, aquela de uma organização político-terrorista, que não hesita seminar morte e terror – com sistemas que posteriormente serão identificados como próprios da al Qaeda – a fim de condicionar as leis do Estado, dobrando-as às necessidades de impunidade da organização mafiosa…É incrível a metamorfose ocorrida, naquele breve período, com Cosa Nostra siciliana, que renega os princípios fundamentais da própria ‘ideologia’ – a violência como remédio extremo e sempre e sempre exercitada de modo cirúrgico, sem comprometer ‘inocentes’ – para chegar à represália indiscriminada das tragédias com bombas, ao estilo ‘libanês’. Uma metamorfose que, até agora, nenhum inquérito conseguiu conseguiu explicar por completo, malgrado a grande quantidade de notícias e testemunhas de numerosos colaboradores de justiça.”

Contextualizando, os autores agregam: “Em 1989, era Giovanni Falcone a anomalia que havia posto em crise o mecanismo de coexistência pacífica entre Estado e máfia. O juiz via longe e compreendia que aquele era o momento bom para desencadear a batalha final contra a máfia. A conjuntura internacional era irrepetivelmente favorável: a caída do comunismo conduzia, no Ocidente, ao fim do perigo vermelho e tornava quase inútil o preconceito anticomunista em cujo nome tinha sido justificado cada conluio inconfessável com os chefes mafiosos, percebidos como barreira à chegada dos cossacos…Era o fim do mito dos ‘uomini d’onore’ ‘justos’ e ‘defensores dos oprimidos’.

Entenda-se que a busca dos Bolsonaros se justifica: além dos crimes de genocídio e peculato, amplamente cometidos por toda a família, ex-mulheres e parentes mais distantes inclusive, o miliciano e asseclas, alguns vergonhosamente eleitos para a Câmara Federal e o Senado, incorreram em crime que está sendo tipificado em 12 países, o mais recente deles, a Bélgica. Trata-se do ecocídio, quando se atenta conta o meio ambiente.

Nesse quesito, o genocida é “hors concours”: matou mais seres humanos, plantas e animais do que qualquer outro no século XXI.

Caso não seja julgado e condenado, a própria justiça se transformará em quimera.

O que vivemos sob eles foi bem definido por Ailton Krenak em “O sistema e o antissistema” (editora Autêntica): “É como se tivéssemos sofrido uma espécie de metástase: a burrice tomou conta de tudo, e a inteligência ofende.”

Em “Não matem o futuro dos jovens” (editora Dalai), Dom Andrea Gallo reflete a propósito: “Passamos de ‘cogito ergo sum’, de Descartes, para ‘consumo ergo sum’, da era moderna. Como se não bastasse, o responsável desta trágica passagem epocal é uma certa casta política cujo moto é ‘rubo, ergo sum’…Querem que passemos da força do direito ao direito da força. A deles!..A globalização, sim, a queremos, e em âmbito planetário, mas contra esse deslocamento de poder e desmantelamento das redes sociais e da cultura popular…Dizia Dom Milani aos jovens: ‘Sejam soberanos.”. E Dom Gallo arremata: ‘Mas o neoliberalismo quer mão livre, por isso tem outros dois objetivos. Primeiro: ter o monopólio da informação para destruir as instâncias coletivas, o estar junto, a solidariedade, isto é, os sindicatos. Segundo objetivo: destruir a consciência crítica, ou seja, o próprio ser. Em primeiro lugar, os jovens. Eis a razão pela qual me interessam, para deixá-los preparados. O poder é, cada vez mais, aquele que quer se tornar absoluto.”

Sejamos absolutos no bem, onde não cabe relativismo, como numa fotografia de Sebastião Salgado ou num quadro do Caravaggio, em que as trevas ocupam seu devido lugar: de sombras da luz.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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