Camila Silva

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negra, ativista, filha de Oxum e Oyá, jornalista, escritora e cineasta cujo foco principal é a inovação e a equidade nos meios de comunicação e mídias digitais. Escrevo sempre movida por um certo amor e um certo ódio.

Opinião

Saúde mental é qualquer coisa, menos um problema de saúde no Brasil

De Bieber a jovens negros silenciados e sem nome, transtornos emocionais são tratados como chacota na nossa sociedade, enquanto dizimam dezenas de vidas por dia

Campanha Setembro Amarelo na orla de Copacabana em 2017 (Tânia Rêgo/Agência Brasil).
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Atenção! Se você sofre com algum transtorno emocional, tristeza permanente e sente que precisa de auxílio, busque apoio médico e psicológico. Entre em contato com o Centro de Valorização da Vida, o CVV, no telefone 180.

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O Setembro Amarelo – mês dedicado à prevenção do suicídio – começou de mal a pior. Justin Bieber anunciou que está com a saúde mental abalada, manteve o show do Rock in Rio, mas cancelou outras apresentações de sua turnê. Em reação a isso, o que se viu foi uma infinidade de memes brincando com a situação, muitas pessoas reclamando a presença do artista, criticando sua postura profissional, cobrando o mínimo de “comprometimento”. O ápice da tragédia pública foi uma enxurrada de críticas capacitistas sobre o artista que “conseguiu subir ao palco e cantar ‘apesar de tudo'”. 

No festival assim como na vida, a plateia é o patrão que obriga o funcionário a trabalhar mesmo que ele tenha uma crise de ansiedade, depressiva, bipolar. Rostos por trás das telas de celulares também representam quem se diz amigo, mas tira sarro da condição emocional dos outros e cobra incessantemente que as pessoas “atordoadas demais” reajam. 

Nem sempre dá pra reagir. Aliás, o que menos dá é pra reagir. Isso, eu garanto. Reagir é uma condição atípica a nós – neurodivergentes – para usar a definição da moda. 

Numa daquelas coincidências da vida, Demi Lovato – diagnosticada com transtorno bipolar assim como eu – e já fora internada algumas vezes por crises depressivas e overdoses, cantava no evento horas antes. Em 2021, ela lançou a música “Anyone” em que grita aos quatro ventos por alguém que lhe dê mais carinho e empatia, mas “Ninguém está ouvindo”. Normalmente não está mesmo, vide esse nosso retrato recente. Quando está, não entende.

Enfrentamos doenças que por assim dizer são “invisíveis” e proporcionalmente a isso, são silenciadas e relegadas à não existência. Mas o sofrimento segue gritando.

Demi diria ao Justin para segurar as pontas, que assim como ela, ele aprenderá sobre “A arte de recomeçar”, título de seu novo álbum, esse de 2022. Eu também diria.

Saúde mental não deveria ser objeto de piada, mas ida de Justin Bieber ao Rock in Rio foi um show de horrores.

Pois bem, transtornos mentais assim como enxaqueca não são exclusividade de gente rica, de ídolos pop, de palcos, de gente branca. São condições que muitas vezes resultam nos casos de suicídio dos quais temos notícias. E é dos menos visibilizados que eu gostaria de falar.

Saúde mental e suicídio é um problema de todos, mas acomete mais aos nossos 

Dados levantados pelo Ministério da Saúde em parceria com a Universidade de Brasília mostram que o risco de suicídio é 45% maior entre a população negra em relação à branca, tendo o racismo como principal agravante. Crianças e jovens negros e negras entre 10 e 29 anos são o maior grupo de vítimas de suicídio no país. Para cada caso, há sim uma doença mas também um viés violento racial e de gênero atentando contra essas vidas.

A nós negros e negras, desde que o banzo foi definido pelos colonizadores e redefinido sob uma ótica filosófica africana, viver bem ou apenas sobreviver é uma luta constante. 

Um rapaz negro que interrompe a própria vida dentro de uma universidade – e não é o único, se junta a dois, a três ou mais casos – explica mais sobre nossa existência e reesistência nesses quase 500 anos desde o início da escravização do que qualquer palavra que eu possa escrever. Mas vou tentar.

Inadequação, inadaptação, sentimento de incapacidade, solidão, isolamento social, se você é negra e negro, trans, indígena sabe exatamente do que estou falando. 

Vivemos em uma sociedade que teima clamar por meritocracia e coloca nas costas de cada uma das pessoas – principalmente negras, indígenas e trans – o fardo psicológico e a responsabilidade por seu êxito ou seu fracasso. Sabemos que problemas estruturais como o racismo estão arraigados como tijolos sobre a nossa história, apoiados nessas trajetórias.

Vivemos constantemente batalhando por um lugar “ao Sol” – trabalhamos e estudamos muito para isso – mas somos relegados ao não-lugar. Nenhum dinheiro, diploma, cargo ou posição social no mundo é capaz de ser maior que a cor da nossa pele. A placa de bem-vindo, que inclui outros corpos majoritariamente ricos, héteros e brancos, é usada como um bloqueio para corpos dissidentes.

Mesmo que alcancemos, que sejamos melhores, que sejamos únicos, que estejamos lá, a estrutura neocolonial e civilizatória se amalgama e militariza para dizer que não somos, para inferiorizar, para diminuir. Nem sempre sucumbimos, resiliência é DNA ancestral, mas esse embate constante é cansativo demais e sucumbir não é escolha, pode e deve ser direito. Só quem se diz fraco é passível de buscar fonte de força e sobrevir.

Como disse o Paulo André – atleta medalhista brasileiro e ex-BBB, que foi vítima de ataques racistas a ele e ao filho recentemente, “preto vencendo incomoda”. E como incomoda! Agora, imagine vivenciar e revivenciar tantos e tantos traumas a cada conquista?

O PA recebeu a maior parte dos comentários racistas em uma foto da festa de aniversário do filho, num momento de alegria. Ou seja, na hierarquia de sentimentos, lidamos primeiramente com a sensação de não-pertencimento, muito depois, sobra espaço para curtir a felicidade, se é que ela vem, quando ela vem.

Mesmo diante da violência, homens negros não podem chorar; mulheres negras não devem sucumbir porque são forte demais. Ambos sintomas de uma sociedade que cria padrões emocionais contrários à nossa natureza, o que também dá cabo de vidas todos os dias.

No lugar mais cru de tanta dor, nós negros e negras, pessoas trans e outros dissidentes vivemos expostos e reexpostos aos traumas nossos e dos outros – a fome é condição coletiva, a morte de cada um e cada uma dos nossos também. 

(Foto: SILVIO AVILA / AFP)

Como lidar psicologicamente com uma expectativa de vida abaixo dos 35 anos ou ainda que a cada 23 minutos um corpo igual ao seu cai assassinado? 

Nesse contexto, criar bons padrões de pensamento é um desafio, já que os péssimos padrões estão dados, estrategicamente fomentados por uma sociedade racista, homofóbica, transfóbica, aporofóbica, misógina,  facilmente acessíveis 24 horas por dia.

Há muito mais motivações entre o suicida e o suicídio cometido do que pode imaginar nossa vã filosofia ocidental de jornal ou internet

Em verdade, nenhuma ação contra a própria vida advém de um fato isolado APENAS ou é provocada única e exclusivamente por influências sociais e exteriores ao indivíduo – contradizendo muitos colegas jornalistas que insistem em noticiar suicídio como algo provocado por apenas um fator. 

Interromper a própria existência normalmente nasce de uma combinação muito complexa de fatores de risco – traumas, perdas, questões culturais, sociais, genéticas, físicas, químicas, psicológicas – transtornos mentais e emocionais pré-existentes como ansiedade, depressão, bipolaridade, TDAH entre outras. Tudo isso tem cura, pode e deve ser acompanhado por uma equipe multidisciplinar com psiquiatra e terapeuta e outros profissionais. Mas precisa ser lido como um problema de saúde. Porque sim, apesar de a saúde mental ser encarada por qualquer coisa, menos como saúde, ela é saúde. 

Não é uma questão de Deus ou falta dele – muito embora todas as ferramentas possíveis possam e devam ser usadas para apoiar quem está doente. Não é sobre autocuidado, autoamor, autoconsciência de internet, é antes de tudo e sobretudo doença e sobretudo saúde. E como tal, deve ser tratada como um problema de saúde e principalmente de saúde pública.

É sobre uma sociedade opressora que deve abolir a meritocracia e outras ferramentas violentas e/ou veladas de opressão e criar políticas públicas para incluir de fato as pessoas. A própria iniciativa “setembro amarelo” precisa se reinventar e entender que o recorte de raça é importante impacta nos números de suicídio e, consequentemente, é necessário levar isso em conta nas campanhas e iniciativas de prevenção.

Precisamos urgentemente de um olhar mais cuidadoso, humano, realista e paciente para nós e para com os outros.

À todas as pessoas sãs – se é que elas existem – que riram ou não do Justin Bieber, me resta pedir que se conscientizem para além das redes sociais. Entendam que saúde mental é saúde. Informem-se e percebam como pequenas ou grandes atitudes podem impactar positiva ou negativamente a vida das pessoas. 

Não é vergonha assumir que se convive com um transtorno mental. Não é vergonha pedir ajuda. Vergonha mesmo é estar do outro lado, desmerecendo quem sente demais. Desmerecendo o que a gente sente.

A quem padece, assim como eu, de alguma questão emocional, registro que já carregamos com uma força extraordinária peso demais por nossas condições físicas, psíquicas e sociais. Livre-se ao menos da culpa de ser ou estar doente. Encare que é sim uma doença da qual se padece – como qualquer outra – com sintomas incapacitantes muitas vezes, mas que é apenas uma doença e ela não nos define. Como escreve Emicida em “AmarElo” “Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes. Elas são coadjuvantes, não, melhor, figurantes, que nem deviam estar aqui”. Não deviam e não ficarão eternamente. Inclusive, se puder, ouça Emicida!

À base de muita música, terapia, apoio, incontáveis mudanças e adaptações de remédios, e enfrentamento de traumas, hoje, posso dizer que sofro sim e muito, mas acolho a minha dor e, a partir dela, me reconheço e ouso criar novas possibilidades. Nem sempre foi assim. Nem sempre é ou será.

Amanhã será outro dia

Aqui, tomo a liberdade de compartilhar um trecho de um texto que escrevi numa das minhas inúmeras crises. Não é sobre gerar gatilhos. É sobre materializar que muito provavelmente quem passa por isso de maneira solitária, achando que está só, na verdade, não está.

“Amanhã será outro dia

(…)

Há pessoas, muitas delas neuro divergentes – como eu – que nem ousam fazer planos do futuro ou pensar no amanhã. Mas eu preciso dizer a eles (a vocês) e pra mim que amanhã será outro dia. E hoje, é apenas um amanhã, um outro dia que já foi insuportável ontem.

(…)

Dar uma chance para o amanhã, para o talvez, é uma chance. Desistir de todas as chances é um caminho sem volta, sem amanhã. E aquele “e se”?! Ele não sobrevive se não houver amanhã.

Eu sei também que as respostas racionais mais óbvias para quem não vive de ópio, é mesmo não ter o amanhã. Mas um dia eu me propus esperar mais um dia. No dia seguinte, me propus esperar outro. E nesses dois dias, eu fui aquela que mesmo não querendo segurar as próprias pedras, ajudou a carregar as pedras dos outros. Até que chegou um dia, que alguém se dispôs a carregar minhas pedras comigo. Depois daquele primeiro amanhã, muitos amanhãs vieram. 

E me parece que o meu amanhã de hoje é esse feito pra te dizer, espera mais um dia, se dá mais um amanhã. Uma hora, falaremos de nossas pedras e amanhãs juntos.

(…)

Amanhã será um outro dia. Mais um dia!”

Impreterivelmente muitas pessoas vão dizer pra você reagir, pra você viver. Mas só você e eu sabemos que viver pode ser difícil demais. Eu te aconselho a segurar as pontas até descobrir que há muita vida e ela muitas vezes é a melhor opção. Eu estou aqui. A Demi está lá. Em breve, ouviremos juntes uma música composta por nós que fala sobre como aprendemos “a arte de recomeçar” todos os dias.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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