Economia

assine e leia

Samuel e o acordo com a U.E.

A negociação repete a Alca, enterrada por Lula, e acaba com a indústria

Samuel e o acordo com a U.E.
Samuel e o acordo com a U.E.
O embaixador Samuel Pinheiro Guimarães. Foto: Geraldo Magela/Agência Senado
Apoie Siga-nos no

Quero escrever hoje sobre Samuel Pinheiro Guimarães e um tema candente, ligado a ele, que se abate neste momento sobre nós – a negociação de um péssimo acordo entre Mercosul e União Europeia, em pleno governo Lula.

O leitor ou leitora conhece Samuel Pinheiro Guimarães? Se não conhece, deve declarar de pronto uma imensa lacuna cultural. Imensa, mas não imperdoável. A verdade é que no Brasil não é incomum que grandes figuras sejam esquecidas, ao passo que nulidades totais, dedicadas a prestar serviço a interesses estrangeiros e às camadas tupiniquins locais, são celebradas em prosa e verso.

Samuel é um desses brasileiros que ainda não receberam o reconhecimento que merecem. Trata-se de um dos maiores diplomatas da sua geração, talvez o maior. Além de ser um grande servidor público, construiu e constrói uma vasta obra intelectual.

O momento culminante da sua ação prática foi como vice-ministro das Relações Exteriores, na gestão Celso Amorim. Entre muitas outras batalhas, destaco a que levou ao arquivamento da Área de Livre Comércio das Américas – a Alca, uma proposta dos Estados Unidos que teria sido desastrosa para nós. Juntamente com Celso Amorim e Adhemar Bahadian, trabalhou com firmeza e habilidade para impedir a concretização desse acordo.

Isso nos traz para o presente, que é o que interessa mais. Samuel, como eu, deve estar dando os proverbiais “arrancos triunfais de cachorro atropelado” por causa do avanço, no governo Lula, do acordo Mercosul–União Europeia. Pois, pasmem, esse acordo é essencialmente igual ao da Alca e não se compreende, portanto, que o mesmo presidente Lula continue a dar seguimento a uma negociação desse estilo – e, destaque-se, concluída no essencial em 2019 pelos governos Bolsonaro e Mauricio Macri, com todas as deficiências que isso acarreta.

O resultado da negociação dos governos Bolsonaro e Macri com a UE foi tão ruim, mas tão ruim, que um negociador europeu chegou a dizer: “We have in a way got away with murder on this ­deal”, o que em tradução livre significa – o acordo é tão favorável a nós que equivale a um assassinato.

O acordo só não foi assinado durante o período Bolsonaro porque o governo brasileiro adotou políticas na área ambiental que terminaram por inviabilizar a sua finalização. Era previsível que a questão se recolocaria, como de fato ocorreu, se Lula fosse eleito em 2022. Além disso, os europeus apresentaram, em 2023, um protocolo adicional ou side letter, reforçando as exigências na área ambiental e configurando de forma ainda mais clara o que se poderia chamar de “protecionismo verde”, a imposição de barreiras ao comércio sob o pretexto de proteger o meio ambiente.

O que fez o governo Lula? Retomou as negociações, aceitando como ponto de partida o pacote herdado de Bolsonaro. O Mercosul ficou, assim, na posição intrinsicamente desfavorável de pedir modificações a um acordo vasto, intrusivo e visto como pronto, ou praticamente pronto. O espaço não permite explicar bem o assunto. Remeto à versão ­online deste artigo.

Até agora, pelo que sei, o governo levantou apenas dois pontos: 1. Busca evitar ou atenuar o “protecionismo verde” dos europeus, modificando as cláusulas ambientais e questionando a side letter. 2. Tenta alterar o capítulo de compras governamentais com o intuito de preservar alguma margem para direcionar as licitações públicas a produtores nacionais. São pontos positivos, mas longe, muito longe de serem suficientes para tornar esse acordo palatável para nós.

O acordo Mercosul/União Europeia, a exemplo da Alca e de outros acordos feitos por países desenvolvidos com satélites da periferia, afeta de forma negativa diversos aspectos da economia. Praticamente inviabiliza uma política de reindustrialização e desenvolvimento.

Resta saber se o presidente e seus ministros estão bem informados sobre o acordo e conscientes do risco que estamos correndo. A negociação vem sendo conduzida, sobretudo, segundo se noticia, pelo segundo ou terceiro escalão do Ministério das Relações Exteriores e do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio. A vingar esse acordo, o primeiro ministério deveria ser rebatizado de Ministério do Subdesenvolvimento; e o segundo precisaria mandar seus diplomatas de volta aos bancos escolares.

Não conversei com Samuel recentemente, mas tenho certeza de que ele concordaria com essas recomendações exasperadas. •

Publicado na edição n° 1286 de CartaCapital, em 22 de novembro de 2023.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo