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Riscos do endividamento global

A criação monetária tornou-se autorreferente, há anos-luz do emprego e da renda

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Riscos do endividamento global
Créditos: EBC Créditos: EBC
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Na edição de terça-feira 23, o jornal Valor apresenta um artigo de Ruchir Sharma, estrategista-chefe do Morgan Stanley ­Investments­. O texto de Sharma cuida dos riscos de elevação das taxas de juro para combater a inflação em um ambiente global de endividamento elevado. Peço licença ao leitor de CartaCapital para selecionar em um parágrafo os trechos que considero mais expressivos do artigo:

“Nas últimas quatro décadas, a dívida total mais do que triplicou, para 350% do Produto Interno Bruto (PIB) mundial… Na medida em que os bancos centrais derrubaram as taxas de juro para seus mais recentes recordes de baixa, o fluxo da farta liquidez para ações, bônus e outros ativos contribuiu para que os mercados financeiros mundiais aumentassem para quatro vezes o PIB mundial… O mercado parece intuir que, seja lá o que ocorra no curto prazo com a inflação e o crescimento, no longo prazo não poderá haver alta de juros porque o mundo está endividado demais… Um aperto brando poderá criar problemas econômicos para muitos países”.

Ainda uma vez, peço a compreensão do leitor para reproduzir textos de história financeira que utilizamos, Gabriel ­Galípolo e eu, para tratar do imbróglio do endividamento no livro Dinheiro – O Poder da Abstração Real.

Começo com o artigo “Public and Private Debt: The Historical Record ­(1870-2010)”, de Moritz Schularick. Esse artigo investiga a evolução do endividamento público e privado entre 1870 e 2010. Schularik mostra que apenas em torno de um terço do aumento da dívida total no mundo ocidental desde 1970 foi devido ao acúmulo de dívida pública. A maior parcela do aumento do endividamento global deveu-se às famílias, empresas e, sobretudo, ao crescimento espantoso da dívida intrafinanceira.

O livro First Responders, organizado por Ben Bernanke, Henry Paulson e ­Timothy Geithner, registra as características dos mercados contemporâneos: “O sistema financeiro mudou de forma fundamental nas décadas que antecederam a crise de 2008: mais crédito e precificação de risco foram intermediados nos mercados financeiros, sob os auspícios de instituições não bancárias. Muitas dessas instituições dependem de financiamento de curto prazo nos mercados monetários atacadistas, em vez de depósitos à vista garantidos e estáveis; assim, são mais vulneráveis a uma queda na confiança dos investidores, o que pode levar à queima de ativos e ao contágio do mercado”.

Ainda sob os temores deflagrados pelo colapso dos preços dos ativos em 2008/2009, o guru de investimentos Seth Klarman assestou os radares para prospectar os riscos de uma próxima crise. Fundador do fundo de hedge Baupost Group, Klarman disse aos clientes que as políticas do Banco Central e os estímulos governamentais convenceram os investidores de que o risco “simplesmente desapareceu”, deixando o mercado incapaz de cumprir seu papel como um mecanismo de detecção de preços.

Klarman criticou o Federal Reserve por reduzir as taxas de juro e inundar o sistema financeiro com dinheiro desde o início da pandemia do Coronavírus, argumentando que os movimentos do Banco Central dificultaram a avaliação da saúde da economia dos EUA. “Com tanto estímulo sendo implantado, tentar descobrir se a economia está em recessão é como tentar avaliar se você teve febre depois de tomar uma grande dose de aspirina”, escreveu ele. “Mas, como acontece com os sapos na água que está sendo lentamente aquecida para ferver, os investidores estão sendo condicionados a não reconhecer o perigo.”

A pergunta que se insinua nos subterrâneos das certezas graníticas dos economistas é implacável. Se ativos e passivos almejam o infinito, como precificá-los em um momento finito no tempo? Eles só podem ser observados em sua infinitude, ou seja, no seu incessante movimento em direção ao infinito. Não há ponto no tempo, apenas o desejo infinito de mais valor. Nos territórios do dinheiro como riqueza, a potência “coletiva” da riqueza infinita absorve todas as impotências da riqueza finita e particular.

Em tempos de “normalidade”, as danças e contradanças dos mercados financeiros realizam a precificação dos ativos singulares em cada momento do tempo, conforme a reputação de cada um, sempre diante de um futuro imaginado como se fora finito. Nos momentos de ruptura do sistema privado de avaliação e precificação, nada resta aos mercados senão a esperança angustiada nos poderes do dinheiro criado do nada, único senhor capaz de impor sua infinitude dominadora.

A perplexidade do guru Seth Klarman reconhece que a criação monetária pelo sistema de crédito, entendido como a articulação entre o agente público, o Banco Central e os bancos privados, assumiu os contornos de um processo autorreferencial na esfera financeira e disfuncional na órbita do emprego e da renda. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1185 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE NOVEMBRO DE 2021.

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