Fernando Cássio

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Professor da Faculdade de Educação da USP. Integra a Rede Escola Pública e Universidade (REPU) e o comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Opinião

‘Rever’ a reforma do Ensino Médio é o mesmo que nada

Não há motivos para comemorar a tímida sinalização de que o MEC fará ‘ajustes’ na reforma educacional antipovo de Michel Temer

Divulgação: Governo de SP
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Foi preciso que o clamor pela revogação da reforma do ensino médio se avolumasse nas redes sociais e na imprensa para que o governo Lula se dignasse a discutir o assunto.

As redes estão repletas de relatos de professores, estudantes e outros profissionais da educação sobre a realidade da reforma nas escolas públicas do país. Desabafar foi o que restou a alunos vitimados pela simplificação curricular e pelo estreitamento de oportunidades. O mesmo para professores, com atribuições hipertrofiadas pela miríade de disciplinas sem conteúdo que a reforma inventou. Já se tornou comum que as postagens do MEC, do ministro Camilo Santana ou do próprio presidente Lula nas redes sociais (não importa sobre o que versem) sejam acompanhadas por comentários do tipo: “Quando vão revogar o Novo Ensino Médio?”, “#RevogaNEM”.

O governo de São Paulo, que possui a maior rede estadual do país e a primeira a implementar a reforma do ensino médio em larga escala, está voltando atrás em alguns “avanços”. Neste ano de 2023, por exemplo, as escolas regulares não estão mais atribuindo professores para as aulas a distância no período diurno (a chamada “expansão”), nem para as salas de leitura, o apoio ao currículo (PAC) e à tecnologia e inovação (Proatec). A razão para a nova diretriz é que continuam faltando profissionais do magistério que deem conta da barafunda curricular que virou o ensino médio paulista.

Contudo, o governo federal e as secretarias estaduais de educação de outros estados se recusam a captar os sinais desse fracasso. O MEC e o Consed – o conselho de secretários estaduais de educação, historicamente “apoiado” por institutos e fundações empresariais – seguem firmes no propósito de avançar na implementação, alastrando os efeitos nefastos da reforma. Peremptoriamente, o ministro da educação descartou a revogação da reforma. Declarou que pretende tão somente “rever falhas”.

O “Novo Ensino Médio” (NEM) foi instituído pela Medida Provisória n. 746/2016, extravagância antidemocrática do governo Temer aplaudida por dez entre dez fundações e institutos educacionais empresariais financiados por bilionários. Meses depois, a MP foi convertida na Lei n. 13.415/2017, que efetivou nada menos do que 54 alterações na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (a LDB, Lei n. 9.394/1996).

Assim, a reforma alterou e colocou na LDB: o esvaziamento do currículo do ensino médio, o barateamento da formação profissional dos mais pobres, a expansão fake de carga horária via ensino a distância e a indução à privatização da oferta educacional direta. Tudo isso (as pesquisas já vêm demonstrando) com efeitos mais pronunciados sobre os estudantes mais pobres, para quem a educação pública costuma fazer maior diferença do que para estudantes com renda familiar mais elevada. “Rever”, “ajustar” e “aprimorar” são eufemismos para não fazer nada, já que os efeitos da reforma estarão integralmente preservados na letra da lei.

O aprofundamento de desigualdades escolares não é um acidente de percurso da reforma do ensino médio, como o efeito colateral de uma suposta “má implementação”. Ele é o efeito principal, previsto e decorrente da concepção da política educacional, para a qual não há remendo possível.

Em nota, o Consed defendeu a manutenção da reforma, alegando que o “Novo Ensino Médio é uma construção coletiva” (15 fev. 2023). O grupo alega ser inviável e insensato “descartar todo esse esforço técnico e financeiro despendido pelas redes estaduais ao longo dos últimos anos”. Já o ministro Camilo Santana, entusiasta da “meritocracia” na educação que se esquivou o quanto pôde de falar sobre a revogação, afirmou em entrevista que não cabem respostas fáceis numa “agenda complexa de política educacional”. Estaria o ministro alcunhando de “resposta fácil” a luta massiva pela revogação da reforma do ensino médio, encampada durante os últimos sete anos por professores e especialistas em educação não vinculados ao filantrocapitalismo que bem conhecemos?

O ministro foi além. Pontificou que “falar em revogação sem aprofundar o debate sobre quais são os elementos problemáticos e as promessas não cumpridas não seria justo com os nossos jovens”. E finalizou com uma defesa da “retomada do diálogo democrático sobre o sentido do ensino médio e sobre como podemos, juntos e com a prudência necessária, entregar a melhor escola”.

Será que Santana desconhece que “os elementos problemáticos e as promessas não cumpridas” da reforma já estão fartamente descritos em pesquisas e sendo relatados por quem está vivendo a reforma nas escolas? Neste momento, deve haver mais de uma centena de pesquisas de mestrado e de doutorado em andamento no país sobre os efeitos nocivos do NEM nas redes estaduais. Injusto com os nossos jovens é seguir com uma reforma educacional que piora objetivamente as condições de escolarização dos mais vulneráveis. Nada disso pode ser chamado de “revanchismo”, como esperneou uma porta-voz educacional do empresariado cujo instituto assessora a implantação da reforma em mais da metade dos estados do país. Trata-se do reconhecimento de um fato cristalino: a reforma piorou o ensino médio brasileiro e temos a oportunidade política de impedir que isso se aprofunde.

A razão para o diversionismo do ministro também é cristalina: ele é ideologicamente alinhado à continuidade da reforma de Temer, o que torna sua exortação à “prudência” e à “retomada do diálogo democrático” um tantinho cínica. Com humildade postiça, Santana e outros apóstolos da “revisão” da reforma exalam superioridade moral sobre os “imprudentes” – os que sustentam consistentemente uma posição contrária à reforma educacional antipovo, cujos previsíveis efeitos de indução de desigualdades são agora corroborados pela realidade. A afirmação de que é necessário “aprofundar o debate” e “retomar o diálogo democrático” ofende a inteligência alheia.

Praticamente ausentes do debate público neste momento, os formuladores empresariais da reforma de Temer tentam forçar a manutenção de tudo como está em reuniões a portas fechadas com o MEC, como já faziam desde a transição de governo. A fim de deitar água fria na fervura da revogação, o ministério pretende criar um grupo de trabalho para discutir os problemas da reforma.

Uma vez que Camilo Santana já declarou que a revogação da Lei n. 13.415/2017 está fora de questão, o único resultado possível desta “abertura” ao debate é a “revisão” desejada pelo ministro. Para sermos justos, aliás, há um segundo resultado: o bônus político de o governo federal reunir os formuladores e os críticos do Novo Ensino Médio na mesma foto, diluindo a amplitude da crítica. Numa tacada só, o governo Lula avança com o programa educacional de Temer e isola a parte mais substancial da crítica à reforma do ensino médio, qualificando-a como “raivosa” ou “sectária” enquanto invisibiliza a profusão de evidências empíricas da tragédia educacional em curso nas escolas do país.

Outros ministérios estão fazendo jus à promessa eleitoral da chapa Lula/Alckmin de reverter retrocessos, eliminar políticas deletérias e reconstituir direitos do povo brasileiro. Já o MEC opera na chave de um centrismo reacionário que demoniza a crítica enquanto promove “debates” assimétricos com resultados pré-determinados.

Muita gente no Congresso Nacional é favorável à revogação da reforma e só aguarda um posicionamento do MEC para dar início ao processo legislativo. Ao que parece, no entanto, a leitura do governo é que defender a revogação da reforma acarretaria desgastes com secretários estaduais e, por extensão, com governadores – coisa que Lula talvez não deseje neste momento. Enquanto o governo federal lapida a gema da governabilidade, milhões de estudantes pobres do ensino médio ficam mais distantes das universidades e dos empregos mais qualificados. Ao aniquilar o ensino médio brasileiro, o governo que exalta a ampliação do acesso às universidades sabota o próprio projeto distributivo de garantia de direitos sociais e as expectativas do povo que o elegeu.

Caso o MEC deseje criar um fórum minimamente representativo para debater os problemas da reforma do ensino médio, sugiro que convidem representantes de ao menos parte das mais de 300 entidades educacionais, sindicatos, associações científicas e grupos de pesquisa que assinam uma Carta Aberta pela Revogação da Reforma do Ensino Médio (Lei n. 13.415/2017). Vai faltar defensor da reforma para conter uma grita dessas.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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