Drauzio Varella

drauzio@cartacapital.com.br

Médico cancerologista, foi um dos pioneiros no tratamento da AIDS no Brasil. Entre outras obras, é autor de "Estação Carandiru", livro vencedor do Prêmio Jabuti 2000 na categoria não-ficção, adaptado para o cinema em 2003.

Opinião

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Resistir às adversidades

A revista Nature chama a atenção para um conjunto de fatores que conferem ao corpo o que a medicina chama de resiliência

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O marido gripado divide a cama com a mulher. Está com febre alta, dores musculares, coriza e tosse e espalha o vírus influenza pelo quarto inteiro. Passam-se os dias, nada acontece com ela.

Dois irmãos fumam um maço de cigarros por dia. Um deles morre de câncer de pulmão aos 50 anos e o outro chega aos 80.

Por que alguns são sedentários, obesos, têm colesterol elevado, pressão alta e passam dos 90 anos, enquanto corredores magros e com o colesterol nos níveis aconselhados têm morte súbita por ataque cardíaco?

A resposta está num conjunto de fatores que conferem o que chamamos de resiliência, característica que pode ser definida como a “habilidade dinâmica de adaptação para resistir às adversidades”.

A revista Nature traz um editorial sobre o tema, chamando atenção sobre sua importância na identificação de fatores de risco que permitam avaliar o risco de desenvolver doenças.

Esses fatores dependem dos genes que herdamos de nossos pais, é claro, mas não apenas deles. Condições socioeconômicas, como a educação; ou ambientais, como a poluição e os extremos de temperatura, interagem com a genética.

Você dirá, leitor: sabemos disso há muito. É novo, no entanto, o esforço para reunir esses parâmetros com a finalidade de construir modelos multidimensionais que permitam calcular a probabilidade de contrair enfermidades que vão da ­Covid–19 ao AVC, demências e muitas outras.

Decifrar as características que nos tornam resilientes tem importância na saúde pública.

Os mecanismos que levam à resiliência podem ser divididos em quatro grupos: biológicos, psicológicos, sociais e ambientais.

Os fatores biológicos são mais conhecidos. Eles envolvem a genética, as proteínas produzidas pelo organismo e a epigenética – conjunto de alterações gênicas que adquirimos no decorrer da vida. A identificação desses fatores exige estudos com grande número de indivíduos, para que a característica avaliada tenha significância estatística.

Um desses bancos de dados, o Global Neurodegeneration Proteomics ­Consortium­ (GNPC), coletou 40 mil amostras de participantes nos quais foram realizadas cerca de 300 milhões de análises de proteínas, envolvidas nos mecanismos que conduzem às neurodegenerações associadas às demências, bem como das proteínas que protegem contra os quadros demenciais.

O editorial cita o exemplo da variante genética do gene APOE4 fortemente ligada à doença de Alzheimer e a outras neurodegenerações. O banco de dados mostrou que essa variante é condição necessária, mas não suficiente para a instalação da doença. A identificação de condições protetoras pode reduzir a probabilidade de Alzheimer em portadores de APOE4.

Esse exemplo ilustra o fato de que a resiliência não depende apenas de fatores biológicos. O estado de saúde mental, o otimismo, as conexões sociais e níveis baixos de ansiedade interferem com as funções neuroendócrinas e imunológicas, tornam as pessoas mais resilientes, capazes de enfrentar o estresse provocado pelo adoecimento, retardar a evolução de patologias crônicas e reduzir a mortalidade.

Insultos ambientais comprometem a resiliência. A poluição e a desidratação causada pelo calor excessivo, por exemplo, podem causar processos inflamatórios crônicos nos pulmões que os tornam predispostos a diversas doenças.

Resiliência não é um processo estático. Por requerer adaptações que redirecionam nutrientes para o feto, a gravidez pode interferir com ela. A gestação é fator de risco para diabetes e depressão, por exemplo. Agressões, violência física e o estresse crônico podem desregular o sistema imunológico e causar inflamação crônica.

Condições maternas têm impacto até na resiliência do feto. Um estudo com mulheres expostas aos horrores da guerra no Congo detectou alterações epigenéticas que alteraram o eixo hipotalâmico-adrenocortical do recém-nascido, que regula a resposta ao estresse e a imunidade.

Embora o envelhecimento seja fator de risco para a maioria das doenças, nem todas as pessoas são afetadas da mesma maneira.

Hoje, sabemos que alguns de nossos órgãos envelhecem mais depressa do que outros. Identificar os fatores que aceleram e os que retardam o envelhecimento dessas estruturas pode sugerir intervenções que protejam contra doenças cardiovasculares, neurodegenerativas, câncer e outras causas de sofrimento da velhice. •

Publicado na edição n° 1381 de CartaCapital, em 01 de outubro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Resistir às adversidades’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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