Justiça

Réquiem para as audiências de custódia, vítima da Covid-19

Audiências de custódia foram totalmente interrompidas. Para elas, não existe alternativa, mas sim a solução fácil pelo seu fim

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Uma advertência inicial: a cerimônia há de ser rápida e, pelo fato de o caixão se encontrar fechado, as poucas pessoas que lamentam não poderão se despedir do morto. A pandemia é um fato e não se trata de uma “gripezinha” a que os antigos atletas se encontram imunes. Isolamento não se adjetiva; logo, a dita espécie vertical é uma invencionice de quem quer negar os fatos. Porém, a experiência desse cenário catastrófico não deveria permitir o extermínio de algo tão importante e que demorou tanto a surgir no cenário jurídico, mesmo após uma antiga previsão nos Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos.

A liturgia sacramental, ainda que breve e ácida, é composta pelo diálogo estabelecido por um eclético trio: o filósofo Diógenes, o teólogo Leonardo Boff e o educador Rubem Alves. Esses três personagens fornecem as premissas críticas ao que se vive e demonstram algo, além do pranto, muito importante.

Dentre os filósofos da Antiguidade, não resta dúvida de que Diógenes, o Cão, pelos seus detratores, é considerado como o mais exótico e histriônico; por outro lado, os que simpatizam com suas ideias alegam a relevância daquele que desnudou a hipocrisia grega com a coerência em seu grau máximo. Não se tenciona exercer aqui o papel de Cão do século XXI[i], mas nesse momento crítico um conceito fundamental aplicado ao seu modo de viver e conceber o mundo não pode ser ignorado:

O segundo conceito fundamental da figura de Diógenes é ‘parresia’ (…) Seu significado não é difícil de compreender, tanto mais que muitas ações de Diógenes o exemplificam. A expressão é geralmente traduzida como ‘liberdade de expressão’, mas seu significado grego é mais preciso. Ele inclui duas palavras (…) o que quer dizer, respectivamente, ‘tudo’ e ‘expressão’ ou ‘fala’. Assim, significa literalmente ‘o tipo de expressão pela qual dizemos tudo’ – sem ambiguidades, sem eufemismos, sem significados ocultos, sem nuances de linguagem enganadoras e, sobretudo, sem a intenção de velar linguisticamente o jeito de as coisas serem. Como afirmou certa feita um cínico, pela ‘parrhesia’ ‘vomitamos toda verdade’, nem mais nem menos.” (NAVIA, Luis E. Diógenes, o Cínico. São Paulo: Odysseus Editora, 2009. pp. 208-209).

O segundo pensador invocado nesse ritual, quiçá já profanado em razão da punição imposta pela Congregação para Doutrina da Fé, ou seja, pela Inquisição, é o teólogo Leonardo Boff que discorre tanto sobre o que é um ponto de vista, quanto sobre a capacidade destrutiva do ser humano:

Cada um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam (…) A cabeça pensa a partir de onde os pés pisam. Para compreender é essencial conhecer o lugar social de quem olha.” (A águia e a galinha. Uma metáfora da condição humana. Edição Especial. Petrópolis: Vozes, 2017. p. 19).

Toda a nossa cultura, à deriva do Iluminismo, exalta o ‘homo sapiens’, o homem inteligente e sábio. Duplicou-lhe até a qualificação. Chama-se de ‘sapiens sapiens’, sábio-sábio. Magnifica sua atitude conquistadora do mundo, desvendadora dos mecanismos da natureza, interpretadora de sentidos da história. Reconhece no ser humano ‘sapiens sapiens’ uma dignidade inviolável. Curiosamente, os mesmo que afirmavam tais excelências do ser humano na Europa, especialmente a partir da Revolução Francesa (1789), as negavam em outros lugares: escravizavam a África, assujeitavam a América Latina, invadiam a Ásia (…) Mostravam no ser humano o lado da demência, de lobo voraz e de satã da Terra. É o ‘homo demens demens’.” (O despertar da águia. O dia-bólico e o sim-bólico na construção da realidade. Edição Especial. Petrópolis: Vozes, 2017. p. 21).

O derradeiro ideólogo trazido para a triste cerimônia é Rubem Alves, que conseguiu, e de forma muito singela, explicar as razões para o ato de escrever para crianças:

Frequentemente pessoas me perguntam sobre o ‘método’ que uso para escrever uma estória para crianças (…) Nem método nem teoria. Tudo começa com uma coceira. Coceira é coisa que incomoda (…) Aí eu começo a coçar e vou coçando, até sair sangue. Quando o sangue sai, a estória está pronta para ser escrita. Como dizia Nietzsche, é preciso escrever com sangue.” (ALVES, Rubem. Ostra feliz não faz pérola. 2. ed. São Paulo: Planeta, 2014. p. 43).

Essas são as três premissas que, a partir de agora, serão levadas ao “liquidificador” do inconformismo construído a partir da equivocada postura assumida frente às audiências de custódia, ou seja, a sua total interrupção no cenário pandêmico.

O Supremo Tribunal Federal, ao deferir a Medida Cautelar na ADPF nº 347, reconheceu o Estado de Coisas Inconstitucional (ECI), isto é, a mais completa incapacidade de o Poder Público assegurar minimante os direitos dos presos. Além dessa declaração, impôs prazo – muitas vezes descumprido, vide o Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro que talvez tenha se mostrado o recordista nacional de reclamações coletivas contra a implementação das audiências de custódia – para efetivação do instituto e destacou a relevância do mesmo para a prevenção e repressão à tortura, tanto que fixou um curtíssimo lapso temporal para a apresentação da pessoa custodiada ao magistrado.

Superlotação de presídios é um dos velhos problemas do sistema prisional brasileiro

Será que no cenário pandêmico as unidades prisionais espontaneamente melhoraram ou o que foi dito outrora não tem mais valia? Como responderia Diógenes a esse questionamento? Certamente que o ECI foi uma manifestação retórica da Alta Corte e que as diversas “justiças” não aderiram a esse discurso. Há vidas e vidas para serem tuteladas e em uma sociedade em que a cidadania possui gradações, as pessoas privadas de liberdade valem menos e, por isso, podem ter parcela de seus patrimônios jurídicos esvaziada.

E por que trazer Leonardo Boff? Porque se trata de um texto cuja parcialidade é assumida, sendo certo que essa decorre não só da função exercida de defensor público. Mas, principalmente, por conhecer o homo demens demens, o fruto do dia-bólico[ii] e por saber que a brutalidade policial é instigada pelas mais altas autoridades policiais. O discurso bélico e de verdadeira eliminação é real, o que, inclusive, ensejou o ajuizamento da ADPF nº 635 que questiona a atual política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro.

Rubem Alves, o educador da instigação da curiosidade, compareceu nesse réquiem, pois, se é o incômodo que deve pautar a escrita, a omissão tem que gerar a censura. E que não se repute como um apontamento genérico, pois a OAB, o Ministério Público e, principalmente, a Defensoria Pública do estado do Rio de Janeiro se mostram inertes diante desse cenário. As pessoas presas continuam a ingressar nas mesmas unidades prisionais onde se realizavam as audiências de custódia, são transportadas em veículos que não foram higienizados, continuam sendo recepcionadas por agentes penitenciários que não usam EPI’s porque não são fornecidos pelo Estado. A única diferença é que a Suma Trindade – o Estado-juiz, o Estado-acusação e a defesa – não mais lá se encontra.

Nesse momento, seria possível falar que a Recomendação nº 62, Conselho Nacional de Justiça suspendeu as audiências de custódia e que toda essa crítica é sem sentido ou mesmo é fruto de algum “terraplanista” da área jurídica. A questão não é tão simples. A Corte Interamericana de Direitos Humanos, mais especificamente no caso J. vs. Peru – reconheceu a violação ao contido no artigo 7º, item 5, Convenção Americana sobre Direitos Humanos mesmo em momento de emergência constitucional. E, além disso, sequer a Recomendação é observada, já que os laudos e fotos não se encontram disponíveis no momento da análise do auto de prisão em flagrante. Hodiernamente, a brutalidade policial possui um quase absoluto salvo-conduto, já que sabe, de antemão, que dificilmente um ilícito praticado em desfavor da integridade psicofísica terá alguma repercussão.

A denúncia, por si só, é importante, mas é preciso ir além. E isso somente se mostrará possível quando as instituições públicas indicadas conseguirem sair do seu mais completo estado de inação. A jurisdição criminal é função essencial, acredite. E não pode ser prestada na atual forma caótica e que sequer consegue atender a Recomendação do Conselho Nacional de Justiça. A unidade prisional de Benfica onde se encontra a Central de Custódia do Rio de Janeiro possui várias áreas abertas, que lá sejam então realizadas as audiências de custódia. Quem sabe assim os agentes penitenciários saberão o que é um EPI fornecido pelo Poder Público e as pessoas privadas de liberdade poderão voltar a ter algum conhecimento sobre as razões do seu encarceramento ou da soltura. Melhores mentes poderão imaginar outras soluções ou mesmo que se faça cumprir a Recomendação nº 62, Conselho Nacional de Justiça acompanhado da torcida para que o país não seja responsabilizado internacionalmente por decidir dar uma tacanha leitura ao artigo 7º, item 5, Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

E se nada for feito e as prisões em flagrante continuarem a ser analisadas a partir das frias folhas – de papel ou virtual? Além do pranto pelas lesões ao contraditório e a ampla defesa, já que as manifestações defensivas são elaboradas sem a prévia ciência do que foi pleiteado pelo Estado-acusação, restará o prosseguimento da liturgia. Assim, peço o silêncio, a audiência de custódia morreu.


[i] Sobre esse aspecto, não se pode olvidar da lição de um dos enciclopedistas: “Toda época, escreveu d’Alembert no século XVIII, precisa de um Diógenes, tanto na coragem necessária para sustentar seu ataque contra suas mais estimadas convicções quanto da clareza mental para entender sua mensagem.”. (NAVIA, Luis E. Diógenes, o Cínico. São Paulo: Odysseus Editora, 2009. p. 10)

[ii]Dia-bólico provém de ‘dia-bállein’. Literalmente significa: lançar coisas para longe, de forma desagregada e sem direção; jogar de qualquer jeito. Dia-bólico, como se vê, é o oposto do sim-bólico. É tudo o que desconcerta, desune, separa e opõe.” (BOFF, Leonardo. O despertar da águia. O dia-bólico e o sim-bólico na construção da realidade. Edição Especial. Petrópolis: Vozes, 2017. p.17)

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