Célia Xakriabá

Primeira indígena eleita deputada federal por Minas Gerais

Opinião

cadastre-se e leia

Reparação histórica

Finalmente os povos indígenas, quilombolas e do campo terão autonomia para homenagear seus próprios heróis ao nomear as escolas em suas terras

Apoie Siga-nos no

Na última semana fizemos história na Câmara dos Deputados. Fizemos valer a nossa história ao legislar em favor da nossa cultura e dos nossos próprios heróis e heroínas. O nosso Projeto de Lei 3148/2023 foi aprovado por unanimidade, sendo o primeiro reconhecido pelo nosso mandato desde a posse da Bancada do Cocar. Um de seus princípios centrais é a autonomia. O projeto dá autonomia às escolas indígenas, quilombolas e do campo na escolha de seus nomes. Nos territórios, já nomeamos nossas instituições com a nossa cultura, mas é preciso fazer disso algo oficial.

É mais que importante, é essencial assegurar às escolas indígenas, quilombolas e do campo a emancipação e a liberdade­ de batizar suas instituições públicas de ensino, com nomes que realmente tenham significado para essas comunidades. Falamos aqui de um processo de reparação, que considera as culturas e tradicionalidades do nosso povo.

Por anos fomos desconsiderados. Nossos heróis foram invisibilizados. Mas herói não é só aquele que usa capa, mas o personagem que dedica sua vida à construção de pontes para o futuro. Precisamos pensar o porquê de sermos os primeiros habitantes do País, mas, nas nomeações dos prédios em nossos territórios, os últimos a ser consultados.

O racismo da ausência manifesta-se também quando tentam apagar as nossas histórias, impondo sobre elas as trajetórias de pessoas externas, invasores de memórias. Quantas de nossas crianças frequentaram e ainda frequentam escolas com nomes de ­pessoas estranhas a elas, nomes estrangeiros? Quando pesquisam sobre esses nomes, percebem que são pessoas que na verdade agiram de maneira prejudicial contra seus povos.

Como sempre digo, quem tem nome tem história. E o nosso projeto tem o objetivo de eternizar no espaço do território o que já é eterno no espaço da memória, a história daqueles e daquelas que com suas vivências se tornaram uma inspiração. O primeiro livro que li foi de meu avô. A primeira matéria que tive foi a história das minhas lideranças. Com o nosso projeto desejamos evocar a lembrança de quem cultivou a resistência, nossas memórias e sentimento de pertencimento.

Nosso projeto de lei também quer proibir expressamente que torturadores e violadores de direitos humanos venham a ser nomeados nos prédios escolares públicos. Quem retira a humanidade e a dignidade dos corpos não pode receber a honra de apadrinhar prédios que acolherão os sonhos e a vida das nossas crianças. Entendemos que assim acabamos com a normalização da violência contra os nossos corpos e nossas existências, assim como a transmissão de valores errados. Torturadores, perseguidores e assassinos não merecem ser homenagea­dos. Acabou! Com o nosso projeto de lei, prestamos respeito aos povos indígenas, quilombolas e do campo.

Falamos aqui de um projeto que busca reparar violências do passado, mas que é inovador ao trazer a importância de uma educação territorializada e que considera as culturas locais, as tradicionalidades e especificidades de cada povo e comunidade. A autonomia que buscamos é uma reparação histórica com povos sempre esquecidos.

Agora são as lideranças de cada região as homenageadas: os pais, os avós que araram e cuidaram da terra, que entenderam os ciclos das águas e os tempos de plantar e colher. Serão as rezadeiras, as parteiras, as mulheres da ciência tradicional que trouxeram tantas vidas para este planeta. Serão homenageados os perseguidos por lutarem pela terra, muitas vezes sem nenhum conhecimento escolar, mas que entregaram a vida para que tantos outros pudessem viver bem e estudar com dignidade.

As escolas indígenas poderão ganhar não somente nomes de pessoas, mas também suas cosmovisões, os modos de vida e tradições. Significa que uma escola pode ter o nome de uma árvore, de um pássaro, de um rio, grafados no idioma de cada etnia. A natureza também será contemplada e homenageada. Para nós, não se trata apenas de seres humanos, mas de todos os seres vivos e não vivos que possibilitam que hoje estejamos aqui, coexistindo e resistindo. •

Publicado na edição n° 1274 de CartaCapital, em 30 de agosto de 2023.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

Leia essa matéria gratuitamente

Tenha acesso a conteúdos exclusivos, faça parte da newsletter gratuita de CartaCapital, salve suas matérias e artigos favoritos para ler quando quiser e leia esta matéria na integra. Cadastre-se!

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo