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Opinião

Reorganização escolar: cenas de um filme conhecido

Já houve uma reorganização nos anos 90 em São Paulo. O que estaria nas entrelinhas da nova iniciativa do governo estadual?

Escola Estadual Diadema
Alunos ocupam a Escola Estadual Diadema em protesto contra o plano de reorganização anunciado pelo governo de São Paulo Escola Estadual Diadema
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O anúncio da reorganização de parte das escolas públicas paulistas pelo governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, coordenado pelo Secretário Estadual da Educação, Prof. Herman Voorwald (ex-reitor da Unesp),  prevê o deslocamento de mais de 300 mil estudantes e fechamento de 94 escolas.

Tal reorganização,  veiculada pela imprensa e definida de forma unilateral, sem participação efetiva e adesão informada das comunidades escolares,  tem incitado debates e manifestações da população em torno de um tema caro a todos: o direito à educação como valor, prerrogativa constitucional presente nas Políticas Públicas Educacionais das últimas décadas no Brasil, um país que tardiamente apresenta respostas para a universalização da educação básica e que não conseguiu ainda responder ao baixo desempenho escolar de crianças e jovens que frequentam as escolas públicas.

A justificativa apresentada pelo governo vem acompanhada da necessidade de melhor organizar, por separação etária, escolas de ensino fundamental I, de ensino fundamental II e de ensino médio, tendo como foco a qualidade dos processos escolares.

A qualidade da educação, outro tema da ordem do dia, por ser complexo envolve, além da oferta de vagas, condições estruturais e sobretudo uma tessitura de valores e de negociações sobre o que seria qualidade para todos os que se ocupam do fenômeno educacional/escolar.

Mudanças dessa amplitude na educação envolvem a conjugação de um conjunto de fatores, especialmente o envolvimento e o diálogo com as famílias, os estudantes e os profissionais da educação, principalmente os professores e os gestores.

Lembramos que, de forma coordenada com o governo federal, as escolas estaduais paulistas passaram por reorganização semelhante, na segunda metade da década de 1990.

Naquela ocasião, por força legal, ocorreu o processo de responsabilização dos municípios pela educação infantil e pelo ensino fundamental I, com uma dinâmica também como a atual, de forma aligeirada e que conta com decorrências estruturais até hoje.

Após duas décadas, municípios ainda tem dificuldade em assumir uma nova estrutura administrativa e sobretudo, pedagógica, com relação ao ensino fundamental I.

Como decorrência dessa reorganização muitas escolas foram fechadas com consequente diminuição de classes para o atendimento à demanda e as dificuldades de acompanhamento e supervisão pedagógica permanecem, o que levou muitos municípios, por exemplo, a ‘terceirizar’ a produção de materiais didático-pedagógicos para grandes empresas do ramo, como materiais apostilados, via de regra, de qualidade duvidosa, conforme indicam pesquisas nessa área, ou seja, uma forma de privatização do ensino público ‘por dentro’.

Seria agora o mesmo caso? O que estaria nas entrelinhas dessa iniciativa do governo? Qual seria a razão desse apressamento?

A matrícula dos filhos em escolas diferentes, e nem sempre próximas, altera a dinâmica familiar e, principalmente, dificulta a participação dos pais na escolarização de seus filhos e na gestão das escolas.

Os estudantes precisarão se deslocar e construir novas relações sociais e de territorialidade. O diálogo entre os professores dos diferentes níveis de ensino, acompanhando a transição dos estudantes, especialmente do ensino fundamental II para o ensino médio, poderá ser interrompido.

A possibilidade do professor do ensino fundamental II e do ensino médio completar a jornada de trabalho em uma única escola também poderá, com essa medida, ser afetada e no lugar disso, a jornada poderá ficar ainda mais fragmentada em escolas diferentes o que tem consequências pedagógicas, entre outras, a impossibilidade do professor se fixar em uma única escola,  condição importante para que ele participe e contribua na gestão da escola, se dedique à formação permanente e construa relações de pertencimento e de colegialidade com a escola e a comunidade local.

Ao contrário dessa dispersão e fragmentação, o contexto atual de implantação crítica da escola de tempo integral, conforme preconiza o Plano Nacional de Educação (PNE), supõe maior dedicação e permanência dos professores em uma mesma escola.

Uma reorganização que terá no mínimo essas consequências administrativas e pedagógicas, para as famílias, os estudantes e os professores, não pode estar a favor da qualidade do ensino.

É também conhecido por todos que as descontinuidades administrativas são marca registrada dos governos brasileiros e a Educação, assim como as demais políticas setoriais, apresentam status de políticas de governo (que por vezes nem conseguem se manter por um mandato) e não de políticas de Estado, o que traz consequências importantes para o que ocorre no interior das escolas.

Sabemos que mudanças estruturais na Educação precisam de tempo e envolvem a conjugação de um conjunto de variáveis, se se pretende a melhoria da qualidade das escolas públicas.

Destacamos a importância de se considerar a atual condição da profissão docente que conta com pouca atratividade profissional, reconhecimento e valorização social, urgência da melhoria das condições de trabalho dos agentes educacionais em geral, da formação inicial e contínua dos professores e gestores, da infraestrutura física e pedagógica das escolas e a necessária diminuição do número de estudantes por sala.

É importante salientar o outro lado da moeda. Tal medida do governo estadual não está sendo aceita nem pelos estudantes (principais protagonistas da escola), nem pela sociedade.

Nos dias de hoje, em torno de 100 escolas estaduais paulistas encontram-se ocupadas pacificamente por estudantes, como forma de reação à reorganização proposta, brindando a todos com exemplo de cidadania e de respeito à coisa pública pelas novas gerações.

Os estudantes, provocados pelo projeto de reorganização, lutam coletivamente com convicção e organização em defesa da escola pública e contra as decisões autoritárias da Secretaria Estadual da Educação, contribuindo assim para a ressignificação da escola e do conhecimento ao atuarem com outra dinâmica frente às decisões governamentais.

Uma dinâmica que faz sentido para eles. Lições a serem ressignificadas ainda! Os professores também mostraram reações às políticas desse governo, com a recente paralisação por uma nova política salarial e de benefícios que durou 92 dias (a mais longa da história dos docentes paulistas), sem contar com sensibilidade política da parte do governo estadual em dar respostas, mesmo que mínimas, às reivindicações apresentadas.

A perspectiva do governo em reorganizar a rede física das escolas em nome da qualidade do ensino, de forma simplificada, isola um fator de um conjunto de variáveis e pode reeditar um filme cujo enredo já é conhecido, assim como o seu final.

*Cristina Cinto Araújo Pedroso é docente do Depto. de Educação, Informação e Comunicação da USP – Ribeirão Preto/FFCL e  pesquisadora do Gepefe – Grupo de Estudos e Pesquisas sobre a Escola Pública e a Formação de Educadores – FE –USP

* Marineide de O. Gomes é docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Unifesp/EFLCH – campus Guarulhos; vice-diretora acadêmica e líder do Gepepinfor – Grupo de Estudos e Pesquisas sobre a Escola Pública, Infâncias e Formação de Educadores e pesquisadora do Gepefe – Grupo de Estudos e Pesquisas sobre a Escola Pública e a Formação de Educadores – FE –USP

 

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