

Opinião
Renascença psicodélica
Entre os vários tratamentos para nossa ressaca antidemocrática, desponta como esperança a ayahuasca, medicina sagrada de povos indígenas amazônicos


Temos pela frente um trauma pedindo cura. Tantos anos de violências físicas e simbólicas, agravadas pela pandemia e as crises social e ambiental, levaram nosso povo a um profundo sofrimento. É a dor lancinante da multidão de vítimas impotentes em face do leviatã bolsonarista – agô Genivaldo Santos: sua memória está presente!
Além da angústia das presas diante dos predadores, agora ecoa o uivo dos lobos delirantes, bandeirosos e lacrimosos defensores do golpe.
Entre os vários tratamentos para nossa ressaca antidemocrática, desponta como esperança a ayahuasca, medicina sagrada de povos indígenas amazônicos que se espalhou no mundo pelas religiões sincréticas – Daime, União do Vegetal, Barquinha – e pela demonstração científica de seus poderosos efeitos antidepressivos.
Entretanto, muito antes do interesse dos brancos pela ayahuasca, a bebida era consagrada por ameríndios. Esses antigos cientistas das folhas e lianas, arcanos empiristas dos tubérculos e anfíbios, pajés e majés de grande sabedoria, encontraram na complexidade da floresta tropical um tratamento eficaz para as dores físicas, psíquicas e espirituais. É óbvio que a propriedade intelectual dessa medicina pertence a eles.
Para tratar desse tema foi realizada, no fim de setembro, a IV Conferência Indígena da Ayahuasca, no Instituto Yorenka Tasorentsi, às margens do Rio Juruá. Depois de três voos, embarquei com minha companheira num barco estreito para 18 horas de viagem rio acima, desviando da miríade de troncos expostos pela seca.
Foi principalmente através desse rio que a incivilização dos brancos, o “povo da mercadoria” denunciado por Davi Kopenawa Yanomâmi e Aílton Krenak, invadiu a terra indígena na fronteira entre Acre e Peru. Como esquecer que padres, missionários e militares atuaram para desenraizar os indígenas amazônicos até aceitarem servir aos patrões seringalistas? Como esquecer a coação de aldeias inteiras, o estupro das mulheres nativas, o sequestro de crianças?
Felizmente, entretanto, a partir dos anos 1980, esses povos se libertaram dos seringais e dos missionários, liderados por caciques como Antonio Pianko e Mario Puyanawa, e por indigenistas como o antropólogo Terri Aquino e o sertanista Antonio Macedo. A demarcação dos territórios foi seguida pela retomada das línguas e práticas espirituais originárias, num processo notável de desevangelização e afirmação de identidade. A ayahuasca foi e continua sendo uma alavanca essencial desse formidável retorno às origens.
A potência de povos distintos pressionados pela mesma opressão reflete-se na diversidade das etnias representadas na conferência: Apolima-Arara, Apurinã, Arhuaco, Ashaninka, Cree, Guarani Mbya, Huni Kuin, i-Nukini, Inga, Jaminawa-Arara, Jiaki, Kichwa de Sarayaku, Kofan, Kuntanawa Manchineri, Marubo, Nawa, Noke Koi, Omágua-Kambeba, Potiguara, Puyanawa, Shanenawa, Shawãdawa, Shipibo-Konibo, Tubu Hururimassã, Wixárika, Yanomâmi, Yawanawá e Yepa Mahsa-Tukano.
Com 95% dos palestrantes indígenas, a conferência debateu um extenso rol de questões, como a apropriação capitalista da ayahuasca, objeto de pedidos de patente por grandes corporações, as mineradoras transnacionais ecocidas, o martírio do povo Guarani Kaiowá acampado à beira das estradas sul-mato-grossenses e o projeto irresponsável de uma rodovia entre Cruzeiro do Sul e Pucallpa, que seria devastador para o Parque Nacional da Serra do Divisor.
Impossível descrever com fidelidade a emoção desse grande encontro à sombra de portentosas sumaúmas. Chamou atenção o alto nível do debate, quase sempre com muito respeito entre líderes com posições diferentes, como Davi Kopenawa Yanomâmi, Benki e Moisés Pianko, Ninawa Pai da Mata, Nixiwaka e Iskukua Yawanawá, Álvaro e Daiara Tukano, Osmildo Kuntanawa, Jerá Guarani Mbya, Noemí, José e Nina Gualinga. Brilhou a força das mulheres indígenas, que sustentam, em atos e palavras, o sonho de futuro para as crianças de todas as cores.
À noite nos reuníamos sob a Via Láctea, para escutar os cantos de cada povo. Ali pudemos refletir sobre a pandemia de sofrimento e sobre a repartição desigual da dor – a taxa de suicídios entre indígenas é três vezes maior que a média nacional. O planeta precisa de cura, o planeta precisa de ayahuasca.
Voltei reverberando a sabedoria que aprendi com Adana Omágua-Kambeba, primeira médica indígena a ter seu nome étnico reconhecido pelo Conselho Federal de Medicina. Que nós, brancos, não nos apropriemos da cultura indígena, mas sim de sua luta pela terra, pelo bem viver, pelo consenso possível, pelo convívio amoroso dos diferentes. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1238 DE CARTACAPITAL, EM 14 DE DEZEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Renascença psicodélica”
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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