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Religião e racismo: novas cenas de uma antiga história

Com posturas racistas, Bolsonaro é tido por muitos como um enviado de deus. A questão é: de que deus?

O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, o presidente Jair Bolsonaro, o pastor Silas Malafaia, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, e o governador do Rio, Wilson Witzel, participam do almoço com pastores evangélicos. (Foto: Tânia Rego/Agência Brasil)
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O Atlas da Violência 2019, verificou a continuidade do processo de aprofundamento da desigualdade racial nos indicadores de violência letal no Brasil. Em 2017, 75,5% das vítimas de homicídios foram negros (pretos ou pardos), sendo que a taxa de homicídios por 100 mil negros foi de 43,1, ao passo que a taxa de não negros (brancos, amarelos e indígenas) foi de 16,0.

É bastante curioso pensar esses números em diálogo com as recentes escaladas racistas não só no Brasil, mas no mundo todo. Na semana passada durante comício na Carolina do Norte, Donald Trump voltou a atacar a deputada democrata e ex-refugiada Ilhan Omar, que nasceu na Somália. Em resposta ao discurso, a multidão de eleitores republicanos gritou em coro: “Mande-a de volta”.

Dias depois o (des)governo brasileiro também protagonizou episódios racistas. Em uma conversa informal com o ministro Onyx Lorenzoni, o presidente afirmou que daqueles “governadores de ‘paraíba’, o pior é o do Maranhão; tem que ter nada com esse cara”.

Ainda na semana passada, a Convenção Batista Brasileira (CBB), por meio de sua secretaria de juventude (JBB), realizou o Despertar – congresso da juventude batista brasileira que reúne centenas de jovens de todo o país -. Na programação constava a mesa “Descolonizando o olhar: o racismo atinge à Igreja?”, composta pelo pastor Marco Davi (Nossa Igreja Brasileira), e pela querida irmã Fabíola Oliveira (Projeto Odara).

Por vontade alheia a JBB, a CBB decidiu cancelar a mesa. É importante destacar que o evento aconteceu na Igreja Batista Atitude, igreja em que Michelle Bolsonaro é membro.

Vejam, três experiências de vasta repercussão foram protagonizadas sem nenhum escrúpulo. Isso porque, como disse Silvio Almeida: “o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo ‘normal’ com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural”. Em outras palavras, Trump, Bolsonaro e a CBB não hesitam em protagonizar relações e discursos racistas exatamente por acreditarem que suas atitudes são perfeitamente normais.

Para eles, não há nenhuma anormalidade em cancelar debates e discussões que tenham a questão racial como nexo, exatamente pelo fato de que o racismo não é uma questão. Não é um problema. Se não há problema, não há o que se discutir. Também não há problema em ser racista, afinal, “racismo não existe”.

Desse modo, nossas igrejas seguem reproduzindo o racismo, e nossos seminários teológicos, faculdades de teologia, nosso ensino segue reproduzindo o racismo, ao tornarem invisíveis as diversas e profundas compreensões de teólogos negros e teólogas negras ao longo da história, porque, como nos provoca James Cone:

“É óbvio que, pelo fato de os teólogos brancos não terem sido escravizados nem linchados, e de não terem sido colocados em guetos por causa da cor, eles não pensam que a cor seja um importante ponto de partida para o discurso teológico.”

Insisto em dizer de dentro. Falo a partir de uma experiência religiosa evangélica protestante batista. É importante lembrar que qualquer um que se aproxime do universo evangélico partindo de um olhar homogeneizador, tende a fracassar na sua percepção. Evangélicos não são iguais, sabemos, e o direito a diversidade e a existência da pluralidade deve ser nosso maior horizonte.

Não é de difícil compreensão que o olhar generalista vai nivelar sempre pelo campo hegemônico, e o campo hegemônico é marcado quase sempre pelas expressões que acessam mais visibilidade, seja pela mídia que possuem, seja pelo escândalo que fazem, seja pelo alcance que possuem, seja pelo medo e a intimidação causados pelo eco dos gritos que vociferam. A hegemonia sempre ocupa espaço demais.

Contudo, não se pode negar o evidente conluio entre evangélicos e o atual (des) governo. Há poucos dias um pastor evangélico disse que o atual presidente é um “enviado de Deus”. Se considerarmos verdadeira a hipótese de Michael Löwy, de que pensar religião e política no interior da vida social latino americana é necessariamente observar uma “Guerra dos deuses”, eu até concordo com o pastor – Bolsonaro é mesmo um enviado de deus. A questão é: de que deus?

Só quem crê em um deus que exige sacrifícios e sistemáticas violações de direitos humanos como forma de culto pode acreditar que o Sr. Bolsonaro representa uma divindade. Neste proposito, é fundamental isso, discernir e desvelar o deus que o atual desgoverno adora: Mamon. O deus dinheiro exige sacrifícios como forma de culto e violências como forma de adoração.

Bolsonaro e seus asseclas nunca poderão evocar a sabedoria profética de alguém que “se fez carne e habitou entre nós”. Jesus, o Deus humano, ama a vida e tudo que faz viver. Então, há um convite a todos aqueles e aquelas que desejam seguir Jesus: sejam profetas do amor. O mundo será “alvoraçado” pela adesão e a exposição ao desconforto da crítica escatológica radical aos desdobramentos dos dilemas atuais, as muitas mortes, ás diversas identidades ameaçadas e silenciadas e, ao enfrentamento aos demônios reais que operam a partir do estado, do mercado, da lei e da religião, dos quais o racismo e a violência parecem ser os principais.

Este texto não reflete necessariamente a opinião de CartaCapital.

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