Opinião
Reforma tributária: não caia na tentação de que existe ‘imposto leve’
Se você for um ‘produtor’, não se esqueça de que você só paga imposto como consumidor (sua empresa apenas o ‘recolhe’)
O comportamento do presidente Jair Bolsonaro recusa sólidos conhecimentos empíricos (diversidades identitárias, péssima avaliação de riscos e outros quejandos divertidos) e é acompanhado de um falatório sobre o problema do clima (que o Brasil continua a observar), sobre o desmatamento da Amazônia (com a desmoralização do Inpe, que vai continuar com o mesmo objetivo), mas talvez esconda um astucioso diversionismo que atrai os críticos mais apaixonados para discussões irrelevantes. Enquanto isso acontece, o que interessa para o sucesso objetivo do seu governo (os trabalhos dos ministros da Economia, da Infraestrutura, da Agricultura, da Cidadania e da Energia) avança sem enfrentar críticas.
A reforma da Previdência foi aprovada, sem o entusiasmo de Bolsonaro, pela coordenação do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que foi seu maior artífice. Ele agora está engajado na reforma tributária, de forma que seria muito bom que todos tentássemos entendê-la.
A primeira lição que se aprendia no curso de Finanças Públicas na FEA/USP, ministrado no início dos anos 50 do século passado (há quase 70 anos) pelo grande tributarista Theotônio Monteiro de Barros, era que a inevitável tributação da sociedade pelo Estado para assegurar os serviços essenciais à sua sobrevivência (segurança interna e externa) e garantir a solidariedade centrípeta, é um animal muito mais complexo do que parece à primeira vista.
Naquele tempo, o imposto estadual mais importante era acrescentado ao preço e cobrado sobre as operações de Venda e Consignações (IVC), recolhido em cada venda, pelos produtores que reclamavam do “alto peso da tributação que pagavam”. A queixa era mais do que suspeita, porque o IVC aumentava os preços de mercado e, portanto, cortava o consumo dos compradores proporcionalmente à elasticidade-preço do produto. Logo, os consumidores pagavam pelo menos uma parte do imposto, mas os empresários (porque o recolhiam) tinham a sensação de pagá-lo na sua integridade. Com o exemplo, éramos introduzidos numa discussão interessante e complexa, a teoria da incidência dos impostos que distingue quem o “recolheu” (em geral, o produtor) de quem, realmente, o “pagou” (em geral, o consumidor).
Por outro lado, o Estado presta serviços que aumentam a “renda” e o bem-estar de quem os recebe. Como insistia o grande professor Theotônio, essa era a beleza do estudo da receita e dos gastos, objeto da Teoria das Finanças Públicas. Com modelos testados empiricamente, tenta determinar quem, nesse jogo, são os “ganhadores” (aqueles cujo bem-estar recebido dos serviços do governo excede o que recolheram como imposto) e os “perdedores”, onde acontece o contrário.
Foi o desenvolvimento teórico e empírico do problema que levou à seleção de alguns princípios que devem obedecer à economia política da tributação: 1. Neutralidade – o imposto, que deve ser pago à autoridade que prestar os serviços, deve ter o menor efeito possível sobre os preços relativos determinados em mercados livres e competitivos, porque são eles que sinalizam o uso eficiente dos fatores de produção que maximizam o bem-estar dos consumidores; 2. Justiça social – deve tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, impondo taxas proporcionais à capacidade contributiva de cada um; 3. Transparência – os mecanismos de tributação devem ser simples e estáveis, para dar garantia jurídica a produtores e consumidores; 4. Baixo custo – para estimular o contribuinte a recolher o imposto.
É sob a luz desses princípios que devemos julgar as várias propostas de reforma tributária que já estão no Congresso, as “avulsas” e a que o Poder Executivo vai ter de submeter-lhe. Por mais complicado que pareça tal julgamento, nenhum cidadão consciente pode ignorá-lo, porque dele vai depender o bem-estar não de quem, aparentemente, “recolhe” o imposto, mas de quem, efetivamente, o “paga”, que, provavelmente, é você, consumidor.
Diz o velho clichê que “só há duas coisas inevitáveis na vida: a morte e os impostos”. Não sei qual será o seu tempo de encontro com a primeira. Espero que esteja longe. Mas sobre a segunda estou seguro: ela vai encontrá-lo muito em breve! Defenda-se dedicando algum tempo para estudá-lo. Se você for um “produtor”, não se esqueça de que você só paga imposto como consumidor (sua empresa apenas o “recolhe”) e não caia na tentação de que existe imposto mágico que “é tão leve que ninguém sente…”. Esse é o mais perigoso.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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