Esther Solano

[email protected]

Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Complutense de Madri e professora de Relações Internacionais da Unifesp

Opinião

Reflexões sobre a construção do mundo de amanhã

A desigualdade, a pobreza e a morte são problemas de todos. Pena que precisemos de tantos cadáveres para entender o que deveria ser óbvio

Presidente Jair Bolsonaro. Foto: PR
Apoie Siga-nos no

Não acho que devamos ser excessivamente otimistas nem pessimistas com o futuro. Não concordo com aqueles que profetizam o fim do neoliberalismo e o começo de uma nova era mais justa e solidária, em que todos nos amaremos incondicionalmente e cantaremos músicas de louvor de mãos dadas, tampouco concordo com os apocalípticos que vaticinam o fim dos tempos e dizem que o corona é a praga que o Apocalipse descreveu. Sobreviveremos, mas o capital também sobreviverá.

Entre as questões negativas que derivarão desta crise, destaco o crescimento do vigilantismo. Aqui na Espanha, onde estou passando estes meses no mais estrito confinamento, o Estado acessa ostensivamente dados de geolocalização dos cidadãos com o argumento de saber quem cumpre e quem descumpre a quarentena.

Todos sabemos dessa situação, a informação aparece nos telejornais e ninguém se incomoda, ninguém protesta, aliás, muitos aplaudem a iniciativa. Mais vigilância, por favor. O medo do vírus e do seu contágio faz com que os cidadãos peçam, quase supliquem, mais vigilância.

Quando o medo avança, sabemos que as consequências para a liberdade são nefastas. O debate fundamental para mim, e talvez a grande janela de oportunidade que se abre à nossa frente, será sobre a necessidade de aumentar o papel do Estado, os serviços públicos e em especial a saúde.

A pandemia deixou claro que só um Estado forte, organizado, eficaz e bem gerido é capaz de enfrentar a violência do vírus e proteger os cidadãos. A covid-19 mostrou ao mundo que, em tempos de tragédia, só podemos contar realmente com a máquina pública.

Espero que os cidadãos que reclamam do tamanho do Estado, de sua suposta ineficiência e corrupção, comecem a repensar suas opiniões. Em tempos de pauloguedismos, privatizações, filosofia do Estado mínimo e da meritocracia, esse debate é absolutamente fundamental. Assim mesmo, a valorização do SUS num contexto de brutal ataque político e desmonte econômico é uma riquíssima lição que devemos tirar deste momento. Com o SUS há vida, sem o SUS há morte. Simples assim. Ponto-final.

Outra questão importantíssima, cujo debate está agora na agenda, é a renda mínima. Não se trata mais de “delírio” ou utopia. Tornou-se uma possibilidade. Por enquanto, é uma renda emergencial, mas está colocada sobre a mesa a questão da importância desse tipo de política pública. Devemos avançar nesse sentido e aproveitar o momento para levar a discussão a outro patamar, para construir uma argumentação potente e estruturada sobre esse tema que dialogue com a população.

Não sou daquelas que pensam que a globalização acabará, mas seremos um bando de idiotas se não repensarmos a nossa brutal dependência da China, por exemplo. Não é possível que seres humanos morram porque não podemos comprar suficientes máscaras da China ou porque o preço delas aumentou barbaramente por causa do coronavírus. Essas aberrações da globalização devem acabar.

Da mesma forma, as alianças e os parceiros deverão ser revisados. Temos um claro caso na Europa. De novo a União Europeia, como na crise de 2008, dá sinais de forte desarticulação e dolorosa assimetria. Os países mais fracos, como a Espanha, de um lado, mendigando ajuda, e os mais fortes, como Alemanha e Holanda, de outro e, muitas vezes, de  lados opostos. Esse tipo de aliança não dá mais.

Se não aprofundarmos uma união política muito mais inclusiva, muito mais igualitária, o europeísmo decepcionará mais uma vez e as alternativas populistas e nacionalistas de extrema-direita continuarão a crescer. Devemos sempre lembrar que o ódio é uma alternativa que está sempre pronta para atuar. O medo transforma-se em ódio muito rápido. Atrás de cada porta há um líder de extrema-direita escondido, aguardando para dar o bote na próxima oportunidade.

Outra das grandes lições a aprender é que no mundo os problemas não são mais estritamente de uns ou de outros. A desigualdade é um problema de todos, a pobreza é problema de todos e a morte é também problema de todos. Pena que a gente precise de tantos cadáveres para entender o que deveria ser óbvio. Tomara que esses cadáveres não sejam em vão e aprendamos de uma vez por todas que a humanidade é uma só. No Brasil, o grande aprendizado é evidente e aparece nitidamente na nossa frente: ser governados por um débil mental mata e mata muito. Espero que nunca mais votemos em um.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.