Talitha Haia

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Médica, escritora e mestre em psicanálise pela Sorbonne em Paris

Opinião

Refletir novos tempos

Já que todo conhecimento precisa de reconhecimento para se tornar ação, deve-se reconhecer que há outras possibilidades de futuro neste País

Caetano tocando no documentário "Narciso em Férias" | Créditos: Divulgação
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Todo discurso, no presente, carrega com ele um passado e um futuro. Logo, torna-se evidente a importância de elegermos representantes que não nos carreguem, com os seus discursos, para um passado ditatorial ainda recente que, ao contrário do que o atual presidente tem exaltado sobre o golpe de 64, não apresenta glória alguma e não deve ser homenageado, mas condenado. Outros enunciados que denunciam e propõem outra visão sobre os fatos e, assim, sobre o futuro, devem ser mediatizados para não nos identificarmos apenas com o desastre político vigente. 

Para estancar o sangue que ainda jorra em falas e atos, então, é preciso que façamos uma curva na nossa história.  Eduardo Galeano, autor de As veias abertas da América Latina, escreveu que a primeira condição para modificar a realidade consiste em conhecê-la. Conhecer a nossa história e nos educarmos sobre o mal que a privação de direitos e liberdades adquiridas, a permissividade de tortura e censura, a incredibilidade da imprensa representam para a civilização, é necessário para darmos um passo em direção oposta aos governos autoritários e de extrema opressão. Neste sentido, a educação que descoloniza representa um passo à frente, uma possibilidade de libertação e de transformação social, como ensinou Paulo Freire.

 Freud nos disse que “Tudo compreender não é tudo perdoar. A psicanálise nos ensina não apenas o que podemos suportar, mas também o que devemos evitar. Ela nos diz o que deve ser eliminado. A tolerância para com o mal não é de maneira alguma um corolário do conhecimento”. Conhecer o passado, embora importante em muitos casos, não significa aceitar as circunstâncias. Para transformar, precisamos aprender também sobre o que não deve ser perdoado, nem tolerado. 

Já que todo conhecimento precisa de reconhecimento para se tornar ação, deve-se reconhecer que há outras possibilidades de futuro neste País. Que há outros discursos que podemos ouvir, além das tantas barbaridades que são silenciadas e faladas pelo atual governo, como homenagens a torturadores de mulheres grávidas. Existem outras realidades vivas aqui. Pois, como Foucault argumentou, onde há poder, há resistência. Já onde há violência, não há mais nada, pois as possibilidades de relação e assim de resposta são caladas. 

Compreende-se, então, que a censura, enquanto impedimento de manifestação democrática, é violenta. Reprime-se justamente o conteúdo que pode fragilizar uma estrutura de poder-saber caso chegue à consciência. Por isso, em regimes ditatoriais, censura-se a arte e toda a manifestação contra a repressão, justamente pela potência que daí nasce, uma vez que essa forma de expressão não nos aliena da realidade e se manifesta onde impera a crueldade, a certeza autoritária, e também onde há a inevitável poesia da vida que, fazendo curva em retas militares, é subversiva. 

Assim, o sombrio Ato Institucional 5 (AI-5) foi instituído: tudo que resistia à onipotência deveria ser reprimido. Resistindo, Chico Buarque se fez ouvido com a coragem do “afasta de mim esse cálice”, reconhecendo o sabor mortífero do “cale-se” da censura e o amargor das palavras não ditas ou reivindicadas em tempos de ditadura. Fazer-se ouvir através da música, da escrita, da literatura e, então, da arte foi um meio de se manter vivo a outros e a si, criando relações possíveis em um período de tantos cárceres.

Caetano Veloso em Narciso em férias disse que houve um período em que, quando preso em uma solitária em decorrência do AI-5, não conseguia chorar, nem gozar: a repressão se fazia no corpo, transformando-o em nada. Definiu-se como “ressequido de vida”, fazendo uma analogia entre a secura do esperma e da lágrima. Nada é fértil em terra sem olhar, sem desejo, sem água. Quando não há espelho e não há no sujeito o que ser refletido, o corpo não captura o tempo. Narciso tira férias e férias nem sempre representam diversão. No documentário, ele cita algo que escutou logo que saiu da prisão: “quando a gente é preso, é preso para sempre”. Mas, mesmo preso, ele ainda podia ler, e ler era o que de alguma maneira o salvava.

A salvação, mesmo quando tímida, acontece porque a arte nos erotiza e nos impulsiona para a vida, indo contra a repressão do pranto, do canto, do gozo, das palavras, do que somos. Chegando em casa, foram também as palavras do pai de Caetano, direcionadas a ele com indignação e proteção, que o tiraram do seu estado de desorientação. É o que comunica com respeito e desejo que possibilita uma relação com o mundo, um reflexo vivo no espelho, uma linha com o outro, uma ressurreição. O cantor baiano também afirmou que o Brasil precisa realizar uma segunda abolição. Enquanto sociedade, precisamos aceitar e soltar essas palavras atadas em algumas mãos e sufocadas em alguns peitos. Porque, mesmo se podemos pouco diante da repetição da história, ainda podemos. E, se a ditadura não foi embora, ainda agora, há quem diga não e reflita novos tempos: cabe a nós escolhermos os discursos, as palavras e os sujeitos que nos representam. 

Canto com Caetano e peço quebrando o silêncio:  

“Maria Bethânia, please send me a letter 

I wish to know things are getting better”.

(Maria Bethânia – Caetano Veloso, 1971)

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