Bruna Camilo

Socióloga e cientista política. Doutora em Ciências Sociais pela PUC Minas (2023).

Opinião

Redpill, ressentimento e feminicídio

Os episódios das últimas semanas não são desvios, mas sintomas de uma máquina social que produz e justifica a violência contra as mulheres

Redpill, ressentimento e feminicídio
Redpill, ressentimento e feminicídio
Este é Thiago Schutz, o 'Calvo do Campari' - Reprodução/Instagram
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A escalada da misoginia nas últimas semanas no Brasil, evidenciada por casos amplamente divulgados como o do influenciador conhecido como “Calvo do Campari”, denunciado por violência doméstica, e o assassinato de duas mulheres trabalhadoras do CEFET do Rio de Janeiro, cometido por um servidor da mesma instituição, coloca em evidência a centralidade da misoginia na organização da vida social e a forma como a internet tem servido como catalisadora de discursos e práticas antifemininas.

Esses episódios não são exceções, mas expressões de uma estrutura que articula cultura, política, redes sociais e relações cotidianas, produzindo condições para que a violência de gênero se reproduza e se intensifique. Exemplifiquei essa ascensão com dois casos, mas, recentemente, assistimos muitos casos brutais de agressões e feminicídios.

Os casos recentes mostram uma lógica estrutural: homens que, sentindo-se autorizados socialmente, mobilizam práticas de controle, humilhação e agressão como forma de reafirmar uma masculinidade ameaçada. No caso do “Calvo do Campari”, o discurso público de superioridade masculina, somado à desqualificação das mulheres, legitima a violência como gesto de virilidade. A notificação de violência doméstica envolvendo o influenciador não deveria ser lida como um caso isolado, mas como expressão de um padrão previsível dentro das lógicas que orientam o movimento redpill no Brasil e no mundo.

O redpill não é apenas um conjunto de opiniões controversas sobre relações amorosas; ele constitui um aparato ideológico estruturado.

Estes grupos funcionam como ambientes de radicalização afetiva e cognitiva, nos quais homens são incentivados a interpretar mulheres como manipuladoras, interesseiras ou inimigas em potencial. Nesse contexto, influenciadores redpill não apenas consomem esse discurso — eles o propagam, performam e monetizam. Essa posição de referência dentro da comunidade exige que reafirmem continuamente valores como autoridade masculina, desprezo por mulheres “independentes” e defesa da disciplina emocional pela via da frieza, da agressividade ou da intimidação.

O movimento redpill, do qual figuras como o “Calvo do Campari” são porta-vozes, sustenta que os homens foram supostamente ‘despojados’ de sua posição natural de poder na sociedade. Essa narrativa produz a masculinidade ressentida: homens que transformam frustração, insegurança e perda de controle em hostilidade direcionada às mulheres. É nesse caminho que nos cruzamos com o feminicida do CEFET-RJ. O duplo feminicídio no CEFET-RJ no final de novembro de 2025 tinha motivação declarada: inconformidade em ser liderado por mulheres. Ambos os casos revelam que não se trata apenas de indivíduos violentos, mas de sujeitos formados por um regime de gênero que naturaliza o domínio masculino.

O feminicida certamente encontrou em algum grupo o conforto para seu ressentimento. Isso contribui para construir um imaginário no qual a violência (simbólica ou física) é considerada uma resposta “natural” ou “justificável” diante da suposta “transgressão feminina”. Quando esse imaginário ganha força, especialmente via internet, mídia social e comunidades masculinistas, ele cria um ambiente de impunidade simbólica. Isso significa que, mesmo que o agressor não cometa de imediato uma violência letal, suas atitudes podem ser toleradas, ignoradas ou justificadas. E se não forem observadas e corrigidas podem levar ao feminicídio.

Um elemento central na articulação contemporânea da misoginia é o papel da internet. As plataformas digitais quando mal conduzidas se tornam espaços que organizam ressentimentos e justificam o ódio que muitos homens tem pelas mulheres. Grupos masculinistas redpills e comunidades antifeministas estruturam redes de apoio mútuo entre homens que se percebem prejudicados pelas conquistas femininas. Ali emerge um discurso de ódio organizado, que dá linguagem, legitimidade e pedagogia para a agressão.

A socióloga brasileira Eva Blay, pioneira nos estudos sobre feminicídio, sublinha que o assassinato de mulheres não decorre de explosões súbitas, mas de trajetórias de controle e disciplinamento dos corpos feminino. A internet amplifica essas trajetórias ao estruturar comunidades que reforçam narrativas de ressentimento, posse, ciúme e vigilância. Assim, o ambiente digital funciona como terreno de incubação, enquanto o mundo físico se torna o espaço em que essas violências são executadas. A transição do discurso ao ato não é acidental: é pedagógica, coletiva e incentivada.

Além disso, a filósofa brasileira Marcia Tiburi destaca que o ódio às mulheres opera como instrumento político, sendo a misoginia uma estratégia de mobilização, usada para agregar homens através da fantasia de uma virilidade ameaçada. Essa mobilização circula em vídeos, memes, cursos, podcasts, influenciadores e grupos fechados que transformam o ressentimento em identidade. A figura masculina apresentada como vítima (da independência feminina, das leis protetivas, do feminismo) torna-se chave para compreender o fortalecimento desses movimentos.

A convergência entre os casos recentes, não somente os apresentados aqui, mostra que vivemos um processo de retroalimentação entre digital e real: discursos misóginos circulam online, organizam comunidades, constroem narrativas de ódio e, posteriormente, se concretizam em violências físicas, psicológicas e letais. A internet não cria a misoginia, mas se torna uma ferramenta de intensificação que oferece forma e escala.

Compreender a misoginia contemporânea exige analisar a interdependência entre as estruturas patriarcais, as tecnologias digitais e o contexto social brasileiro. Os episódios das últimas semanas não são desvios, mas sintomas de uma máquina social que produz e justifica a violência contra as mulheres. E é somente reconhecendo essa articulação — entre cultura, política, algoritmos e relações — que podemos enfrentar de forma efetiva os mecanismos que sustentam esse ciclo.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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