Jamil Chade

Jornalista, correspondente internacional, escritor e integrante do conselho do Instituto Vladimir Herzog

Opinião

Reconstruir Gaza 

Dinheiro e cimento não serão suficientes. Resta saber como recompor uma sociedade após um genocídio

Reconstruir Gaza 
Reconstruir Gaza 
Uma multidão de palestinos segue tentando sair da Cidade de Gaza, epicentro da guerra com Israel. Foto: Bashar TALEB / AFP
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Em 1928, Aldous Huxley escreveu o romance Contraponto. Um dos diálogos terminava com uma pergunta desconcertante: “Como você sabe que a Terra não é o inferno de outro planeta?” Em Gaza, hoje, essa pergunta parece fazer sentido para milhares de habitantes. Crianças descalças empurrando avós em cadeiras de rodas pelos escombros. Crianças amputadas lutando contra a poeira. Mães carregando crianças com a pele sangrando devido a erupções cutâneas. Crianças tremendo diante dos implacáveis ataques aéreos. E crianças olhando para o céu, acompanhando o fogo a partir de helicópteros.

Com o anúncio de um acordo de cessar-fogo na quarta-feira 8, a ONU começa a avaliar o que poderia ser um plano de reconstrução. A estimativa é de que, se os canhões forem silenciados imediatamente, a região precisará de dez a 15 anos para se reerguer, num ­custo avaliado em 53 bilhões de dólares. Já a recuperação dos danos ambientais em Gaza poderia levar décadas.

O abastecimento de água doce está severamente limitado e grande parte do que resta está poluída. O colapso da infraestrutura de tratamento de esgoto, a destruição de sistemas de encanamento e a dependência de fossas sépticas para saneamento provavelmente aumentaram a contaminação do aquífero que abastece a maior parte do enclave, enquanto as áreas marinhas e costeiras também, suspeita-se, estariam contaminadas.

Além disso, desde 2023, a Faixa de ­Gaza perdeu 97% das árvores, 95% da cobertura vegetal e 82% das plantações anuais, tornando impossível a produção de alimentos em larga escala. De acordo com a ONU, perto de 78% dos estimados 250 mil edifícios foram danificados ou destruídos, gerando 61 milhões de toneladas de entulho, das quais em torno de 15% podem estar contaminadas com amianto, resíduos industriais ou metais pesados. O volume é o equivalente a 15 pirâmides do Egito.

Atualmente, ninguém tem acesso a saneamento seguro, em comparação com 85% da população conectada a sistemas de esgoto e estações de tratamento antes de outubro de 2023. Mais de 1,2 milhão de moradores (57% da população de ­Gaza) estão expostos a esgoto ou matéria fecal a menos de 10 metros de suas casas, representando graves riscos à saúde. Apenas metade das famílias tem acesso a saneamento básico privado, enquanto o restante depende de instalações compartilhadas ou inseguras, comprometendo a saúde e a dignidade. No fim de 2024, existiam poucas latrinas em Gaza. Cada uma delas era usada por centenas de desesperados.

O acesso a produtos de higiene é extremamente baixo: 63% das famílias (1,3 milhão de indivíduos) não têm sabão, principalmente devido aos altos preços. Quase 500 mil mulheres e meninas não têm materiais adequados para higiene menstrual, o que afeta gravemente sua saúde, dignidade e mobilidade. Desde 18 de março de 2025, nenhum item de saneamento entrou em Gaza, e os itens de higiene foram bloqueados até o fim de julho. Embora pequenas importações do setor privado tenham sido retomadas em meados de agosto, a disponibilidade permanece muito limitada.

A gestão de resíduos sólidos em Gaza deteriorou-se drasticamente. Os serviços de coleta foram severamente interrompidos pela escassez de combustível, falta de peças de reposição e aterros sanitários inacessíveis. Como resultado, 42% das famílias vivem perto de resíduos não coletados, deixando, aproximadamente, 900 mil palestinos expostos ao acúmulo de lixo em áreas residenciais.

O colapso da gestão de resíduos, portanto, criou condições ideais para a explosão de doenças. Nenhuma intervenção de controle de vetores foi implementada em mais de dois anos, permitindo a proliferação de pragas e parasitas. Como resultado, 64% das famílias relatam infestações de piolhos e ácaros, e 57% apontam problemas de pele, como erupções cutâneas e sarna, condições diretamente relacionadas à falta de higiene, superlotação e exposição ao lixo.

A crise hídrica contribuiu para o aumento de doenças infecciosas, incluindo casos de diarreia aguda (que aumentou 36 vezes) e síndrome de icterícia aguda, indicativa de hepatite A. Neste caso, o aumento foi de 384 vezes. De um total de 214 instalações de dessalinização de águas subterrâneas, apenas 84 ainda estão em operação.

Não por acaso, a ONU admite que jamais viu um conflito destruir de forma tão rápida um local nos últimos anos como em Gaza. Imperdoável, o ataque cataclísmico deixou o território irreconhecível. Os 66 mil mortos e 150 mil feridos são apenas os números oficiais, enquanto famílias ainda esperam desenterrar milhares de corpos sob os escombros. Reconstruir, quando o momento chegar, será uma operação sem precedentes na região. Dinheiro e cimento não serão suficientes. Resta saber como reconstruir uma sociedade após um genocídio. •

Publicado na edição n° 1383 de CartaCapital, em 15 de outubro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Reconstruir Gaza ‘

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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