Eloisa Artuso

Pesquisadora, educadora, designer estratégica e cofundadora e diretora executiva da Febre, plataforma de pesquisa, estratégia e conteúdo multimídia

Opinião

Rana Plaza: O que aconteceu com a moda 10 anos depois do seu maior desastre?

Para atender às demandas e pressões da fast fashion, o setor da confecção no Brasil é composto majoritariamente por micro e pequenas empresas com baixa profissionalização, pouca capacidade de crescimento e baixas condições de investimento em melhores condições de trabalho

Vítimas da tragédia do Rana Plaza prestam homenagens no local onde ficava o prédio em Savar, nos arredores de Dhaka (Foto: Munir uz ZAMAN / AFP)
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Vimos acontecer importantes ações e transformações na indústria global e brasileira nesses últimos anos, no entanto, elas não são, nem de longe, o suficiente para lidar com os problemas intrínsecos e estruturais do sistema da moda. O fato é que desde o Rana Plaza, tudo mudou e nada mudou.

No dia 24 de abril de 2013 o Rana Plaza, edifício que abrigava confecções de roupas em Daca, capital de Bangladesh, desabou causando a morte de 1.138 pessoas e deixando mais de 2.500 gravemente feridas. Essas pessoas que ocupavam o prédio de 8 andares, em sua maioria mulheres jovens, produziam para grandes marcas globais. Com o avanço da globalização, principalmente a partir dos anos 90, marcas e varejistas encontraram nos países asiáticos a fórmula ideal para acelerar e aumentar o volume de suas produções e expandir seus mercados consumidores: mão de obra precarizada e, portanto, barata e falta de regulamentação ambiental. Ou seja, o abuso aos direitos humanos e trabalhistas e a exploração descabida da natureza, geram ainda mais lucro. 

A cadeia de fornecimento da moda é complexa porque é globalizada, bastante ramificada (depende de diferentes processos e materiais, inclui muitas etapas desde a extração da matéria-prima até o varejo) e extremante mal rastreada e opaca. A falta de transparência, regulamentações robustas e processos de devida diligência e compliance mais abrangentes torna muito mais difícil encontrar, remediar ou prevenir irregularidades e abusos. Não fosse por isso, o que poderia explicar o fato de terem que vasculhar os escombros do Rana Plaza em busca das etiquetas das peças que estavam sendo produzidas para descobrir quais marcas tinham ligação com as 5 fábricas instaladas no edifício? Algumas dessas marcas precisaram de semanas para explicar o que suas roupas estavam fazendo lá e qual relação comercial tinham com aqueles fornecedores.

Vale dizer que este acidente, considerado o desastre industrial mais mortal da história da manufatura, poderia ter sido evitado. Mas os avisos sobre as rachaduras e más condições do prédio foram ignorados para não parar as produções. As trabalhadoras e trabalhadores das confecções receberam ordens de retornar ao local, com ameaças de corte nos pagamentos caso se recusassem a trabalhar.

De acordo com laudos, os quatro andares superiores foram construídos sem licença para suportar o trabalho fabril. Isso quer dizer que o modelo de produção predominante, que busca o lucro acima de tudo, desenvolveu uma lógica que “justifica” a exploração, determinando quais vidas valem menos e quais lugares podem ser considerados zonas de sacrifício, ou seja, lugares considerados descartáveis ​​para a promoção contínua do crescimento econômico. 

Não é exagero dizer que essas zonas existem. Porque, por exemplo, exatamente 5 meses antes do desabamento do Rana Plaza, no dia 24 de novembro de 2012, houve um incêndio na Tazreen Fashion nos arredores de Daca, onde pelo menos 117 pessoas foram mortas e mais de 200 ficaram feridas. Essa fábrica de roupas também produzia para várias empresas multinacionais americanas e europeias. Estes eventos e outros semelhantes levaram a inúmeras propostas de reformas nos direitos dos trabalhadores e leis de segurança em Bangladesh. 

O Acordo de Saúde e Segurança de Bangladesh (agora conhecido como Acordo Internacional de Saúde e Segurança na Indústria Têxtil e de Vestuário) foi assinado algumas semanas depois do Rana Plaza e é um acordo histórico que reuniu marcas, varejistas, sindicatos e fábricas fornecedoras para tratar da segurança predial e contra incêndio em fábricas de vestuário em Bangladesh. Foi a primeira vez que marcas de moda globais reconheceram sua responsabilidade direta pelas condições de trabalho em suas cadeias de fornecimento – e 192 empresas estão atualmente inscritas. Em 2021, o Acordo foi ampliado para proteger as trabalhadoras e trabalhadores do setor têxtil e de vestuário no Paquistão, contando com 45 signatários até agora, mas empresas como Amazon, Decathlon, Levi’s e Walmart ainda não assinaram, colocando, mais uma vez, seus lucros acima das vidas das pessoas em suas cadeias produtivas. 

Enquanto isso no Brasil – considerado a maior cadeia têxtil completa do Ocidente (desde a produção de fibras, como o algodão, até os desfiles, passando por fiações, tecelagens, beneficiadoras, confecções e forte varejo) e onde o setor de confecção é o 2º maior empregador da indústria de transformação – também temos nossas zonas de sacrifício.

Para atender às demandas e pressões da fast fashion (moda rápida) o setor da confecção é composto majoritariamente por micro e pequenas empresas com baixa profissionalização, pouca capacidade de crescimento e baixas condições de investimento em melhores condições de trabalho e renda para as trabalhadoras, como indica o relatório Mulheres na Confecção: Estudo sobre gênero e condições de trabalho na Indústria da Moda realizado em 2022 pelo Escritório das Nações Unidas de Serviços para Projetos (UNOPS) com o apoio do Ministério Público do Trabalho (MPT) e da ONU Mulheres Brasil.

O estudo também aponta que a cadeia produtiva da indústria da moda vem se estruturando em direção à terceirização e quarteirização do seu processo produtivo, resultando em maior dificuldade de fiscalização das peças produzidas e das empresas e oficinas envolvidas na confecção. Ainda, dentre as trabalhadoras refugiadas e migrantes identificou-se vulnerabilidades específicas que dificultam o acesso delas a condições dignas de trabalho, como: não regularização da situação migratória no país, medo de deportação e/ou punições, falta de moradia, não validação do diploma e barreiras para acessar serviços bancários e crédito. Entre outras descobertas, o material também indica a necessidade de maiores investimentos na fiscalização de toda a cadeia da moda varejista para que as condições de reprodução da precariedade, que podem chegar a condições análogas à escravidão, não atinjam a vida de outras mulheres, o que tem recaído principalmente sobre as mulheres refugiadas e migrantes.

Do ponto de vista ambiental, podemos ver as águas do rio Capibaribe, no Agreste Pernambucano, tornadas azuis por conta da poluição química da lavagem do jeans, produto que movimenta a indústria local envolvendo cerca de dez mil famílias no polo atacadista de confecções composto pelas cidades de Santa Cruz do Capibaribe, Caruaru e Toritama. Sem contar que essa etapa de beneficiamento e lavanderia de pecas consome um volume enorme de água em uma região que não tem água. Das mais de 800 lavanderias existentes na área, menos de 40% delas tratam a água de sua produção. 

A matéria-prima principal do jeans é o algodão, cuja cultura utiliza alguns dos agrotóxicos mais vendidos no Brasil. Mas o uso de agrotóxicos não impacta apenas as comunidades próximas e a exposição cumulativa a eles deve ser considerada visto que alguns compostos amplamente utilizados podem permanecer presentes em organismos, água e solo por muitos anos. O Brasil é o maior mercado de agrotóxicos do planeta e o algodão é a quarta cultura que mais consome agrotóxicos, sendo responsável por aproximadamente 10% do volume total de pesticidas utilizado no país. Entre os agrotóxicos mais utilizados está o glifosato, que pode causar diversos efeitos na saúde, como aborto espontâneo e câncer. 

Então, neste contexto nacional, o que vemos é que apesar de existir um plano nacional de combate ao trabalho análogo ao escravo, certificações para garantir compliance e fornecimento responsável, tecnologia Blockchain para ajudar a trazer transparência à cadeia produtiva, leis ambientais voltadas ao tratamento de efluentes além de apelos dos consumidores mais atentos e de iniciativas das organizações da sociedade civil por maior ação do poder público e responsabilização por parte das empresas, ainda temos um longo caminho pela frente. A última edição do Índice de Transparência da Moda Brasil apontou que a média geral do nível de transparência das 60 marcas analisadas em 2022 sobre suas políticas, práticas e impactos sociais e ambientais é de apenas 17%. 

No livro Rethinking Corporate Sustainability in the Era of Climate Crisis (Repensando a Sustentabilidade Corporativa na Era da Crise Climática) de Raz Godelnik, o autor apresenta uma crítica contundente aos esforços de sustentabilidade nas empresas nas últimas décadas. Esforços esses que, de acordo com ele, evoluíram de um modo operar os negócios como de costume (business as usual) sempre visando o lucro acima de qualquer coisa, que parte de um viés neoliberal que molda a narrativa de uma era centrada no acionista – o capitalismo de shareholders – que mesmo em meio a críticas continua até hoje a desempenhar um papel crítico na formação dos negócios.

Para Godelnik “tudo mudou e nada mudou” já que o progresso lento e/ou insuficiente da sustentabilidade nos negócios é comum. Assim como no livro Small Actions, Big Difference (Pequenas Ações, Grandes Diferenças) C. B. Bhattacharya sugere que, infelizmente, o atual movimento de sustentabilidade corporativa é insustentável. Isso vem de encontro com o que reporta um estudo de 2020 desenvolvido pelo Pacto Global da ONU, indicando que embora os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) forneçam uma estrutura para lidar com muitas desigualdades e tenha existido progressos em várias áreas, não estamos no caminho certo para alcançá-los e o avanço em direção aos ODS tem sido “lento ou até revertido”.

Com isso, Raz Godelnik propõe o conceito de “sustentabilidade como de costume” (sustainability as usual) para descrever o estado atual da sustentabilidade nas empresas, que representa uma mudança nos “negócios como de costume”, mas ainda fundamentado e definido por isso e que ambos os conceitos evoluíram lado a lado nas últimas décadas. 

Assim, por mais um ano, no dia 24 de abril, precisamos honrar todas as vidas perdidas pela moda, não só em Bangladesh, mas ao redor do mundo, nos diferentes países produtores onde pessoas estão expostas às mais diversas formas de violações aos direitos humanos, em zonas de sacrifício também ambiental, em nome do lucro e do consumo insaciável. Por mais um ano, nesta data e nos restantes 364 dias, precisamos erguer nossas vozes em protesto contra um sistema político-econômico que oprime e explora e em prol da justiça e do desmonte das estruturas de poder que sustentam essa indústria. 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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