Carla Jimenez

Jornalista há mais de 30 anos, foi diretora e editora chefa do EL PAÍS no Brasil e co-fundou o portal Sumaúma

Opinião

Quero ver o céu, as construtoras não deixam

Em São Paulo, o mercado imobiliário passa ‘boiadas’ de concreto para verticalizar a cidade, matando solo, água e qualidade do ar 

Prédios da Faria Lima, coração do mercado financeiro de São Paulo - ADVTP / Shutterstock.com
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Vivo em São Paulo desde 1981. Antes de a minha família se mudar para cá, vinha com meus pais para resolver “diligências” burocráticas. Eram os anos 70. Lembro até hoje da sensação de ficar hipnotizada com aquela profusão de luzes, cartazes, edifícios, monumentos, e aquela multidão de gente no centro da cidade. Vivemos em municípios menores até chegar à megalópole, onde criamos raízes. Desde pequena peguei amor por São Paulo, me sentia em casa, antes mesmo de tomar posse dela. 

Estabelecer-se aqui ainda é o sonho de muitos migrantes e imigrantes. Sem entrar na discussão de quanto cada um vai demorar para chegar lá, São Paulo, e seus 11,4 milhões de habitantes, continua a ser sinônimo de oportunidades e conta a sua história através dos personagens que vieram atrás delas. A pergunta que alguns paulistanos começam a se fazer agora é: a que preço estamos ‘contratando’ essa São Paulo. À luz do Plano Diretor da cidade, que inicialmente tinha a proposta de trazer mais justiça social e qualidade de vida para a megalópole, São Paulo mostra uma de suas faces mais perversas. A de apagar sua identidade em nome de um progresso desenfreado.

Em tese, o Plano Diretor viria adensar regiões onde o transporte público está bem desenvolvido. Era a chance de aproximar a população que estava mais longe, que vive em áreas periféricas, para as regiões centrais, e ajudar a reduzir o déficit habitacional. Haveriam habitações populares em bairros mais centrais. Em alguns bairros, no entanto, houve resistência dos próprios moradores à chegada de vizinhos com a alcunha “social”. Um debate que se perdeu no caminho e deixou a porta aberta para a especulação imobiliária.

Construtoras se apossaram do plano, pediram puxadinho aqui e ali aos vereadores da Câmara, e garantiram, com a deturpação de conceitos urbanísticos, colocar o ritmo de ‘boiada’ para erguer espigões, imóveis de pequeno porte a preços altos. Contam com a leniência da prefeitura, e com a distração, ou indiferença, de grande parte dos paulistanos para tocar esse projeto.

À luz do Plano Diretor, que inicialmente tinha a proposta de trazer mais justiça social e qualidade de vida , São Paulo mostra uma de suas faces mais perversas

O termo “boiada” ficou conhecido em maio de 2020, quando o então ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles sugeriu, durante uma reunião ministerial com o ex-presidente Jair Bolsonaro, que era preciso passar a boiada na Amazônia, enquanto o Brasil estava ‘distraído’ com a pandemia do coronavírus. E dessa forma, com decretos, emendas e portarias, o governo anterior destruiu boa parte da Amazônia. 

Dar velocidade à transformação seria boa, se estivesse a serviço do que é de fato prioritário. Mas não. Assim como no norte do país, tem poucos ganhando muito e deixando um rastro de destruição, sem pensar nas pessoas, no clima, nas consequências. A cidade está multiplicando obras e edifícios nos mesmos bairros do centro expandido que já estavam bem ocupados, com riscos diretos para a segurança e a saúde de seus moradores. Pinheiros e Perdizes, na zona oeste, e o bairro do Tatuapé, na zona leste, são campeões de obras, segundo um estudo feito pelo urbanista Ivan Maglio, pesquisador do Lab Verde da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, e da arquiteta e urbanista Juliana Souza Carneiro.

Uma rápida caminhada por Perdizes mostra bem como esse ‘milagre econômico’, guiada pelo Plano Diretor, está tornando o bairro sufocante. Há trânsito intenso em ruas domiciliares. Não dá para se ter uma ideia do céu em sua plenitude quando você está caminhando por ali, com prédios cada vez mais altos. E, segundo Maglio, o quadro vai piorar ainda mais, porque “o mercado imobiliário transformou o plano Diretor num balcão de negócios”, diz ele. 

Maglio reconhece esse comportamento de ‘boiada’ das construtoras em São Paulo, sem o protesto esperado da população. “Tudo tem sido feito sem suporte e sem estudos de impacto ambiental e climático”, afirma. “Politicamente, é o mesmo que acontecia no meio ambiente com o governo federal. Agora acontece com as construtoras em São Paulo”, completa Maglio. 

A indústria da construção define o caráter paulistano desde a sua fundação. Nos anos 80 e 90, por exemplo, a onda de sequestros-relâmpago e assaltos de rua ajudaram a fomentar a ideia de que shopping centers seriam o ideal para a cidade. Cômodos, fechados, servem até hoje de lazer para o paulistano que quer se sentir seguro. O problema é que andar a pé em São Paulo virou uma neurose, maior do que a realidade se apresenta, e a capital continuou a aceitar suas calçadas estreitas, suas ruas mal planejadas, e sua falta de áreas verdes que poderiam atenuar outras consequências da especulação financeira, como o solo impermeabilizado por edifícios. Dias de chuva se tornavam um risco de morte para o paulistano. 

Houve um respiro importante nessa toada. Quem vive no centro expandido aprendeu tardiamente que ocupar as ruas da cidade é uma forma de espantar a violência. As ciclovias, as festas de bairro, as ruas fechadas, como a avenida Paulista aos domingos e feriados, trouxeram mais frescor e humanidade a São Paulo. Veio também o carnaval de rua, que trouxe ainda mais vida para a capital paulista.

No entanto, nada disso conversa com o projeto urbanístico que a indústria da construção tem para a cidade. “Não é sobre construir mais. A questão principal é como os habitantes estão vivendo, do que eles estão precisando, porque desenvolvimento urbano não é quantitativo, é incremento de qualidade de vida da população”, alerta Daniela Libório, presidente da Comissão Especial de Direito Urbanístico do Conselho Federal da OAB, e que já presidiu o Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico. 

Libório chama a atenção para um ponto ainda mais grave na matemática perversa que a indústria da construção estabeleceu em São Paulo. Há milhares de imóveis vazios de um lado, e um déficit habitacional de outro. Segundo o IBGE, são 588.978 unidades residenciais vazias, o dobro de 12 anos atrás, conforme o Censo realizado no ano passado. De outro, um déficit de 400 mil imóveis para famílias que buscam moradia. “Essa conta não fecha”, diz Libório. Alguém está ganhando e o paulistano, com certeza, está perdendo. 

O coração da cidade não quer bater nesse ritmo frenético e auto-destrutivo. Não podemos adoecer mais para enriquecer os barões da construção, fomentados pelo mercado de fundos e investimentos estrangeiros e pouca regulação. 

Precisamos nos voltar para o que São Paulo é feito. De 11,4 milhões de pessoas, histórias, vivências, memórias afetivas. É o patrimônio da capital e sua enorme capacidade de abraçar a diversidade. Onde tem uma roda de samba que dura o tempo de uma vela palito acesa? Em São Paulo tem. O Samba da Vela, no bairro de Santo Amaro, em plena segunda-feira. Uma feira boliviana para conhecer um pouco da cultura daquele país, incluindo o refrigerante Inka Cola? A Kantuta, no centro da capital, aos domingos. Dá para conhecer a cultura de meio mundo sem sair daqui. 

São Paulo tem muitos sabores. Do cachorro quente depois da balada, do pastel de feira, do pão na chapa da padaria. Tem inúmeras atrações populares. Da Virada Cultural, da Virada Sustentável, Esportiva… Grafite irreverente, cerveja na rua Augusta, museus, balada no Sambódromo, batalhas de slam. A gente precisa acordar o paulistano para cuidar da sua cidade e valorizar esse intangível. As grandes discussões estão acontecendo na Câmara dos Vereadores e o concreto sobe enquanto a gente está preocupado em ganhar dinheiro. Precisamos nos parecer mais com nós mesmos, e menos com as construtoras. Tomar posse do que é importante e brecar esse progresso desenfreado que pode nos matar.  

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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