

Opinião
Quem teme a sabatina?
Jorge Messias e o colapso das engrenagens políticas no Brasil
A turbulência em torno da indicação de Jorge Messias para o STF não é um episódio isolado de intriga institucional. Trata-se de um sintoma da deterioração do que um dia foi chamado de “presidencialismo de coalizão”. E, como tal, revela a fragilidade estrutural crescente da governabilidade no Brasil.
Historicamente, no Brasil pós-1988, o presidencialismo de coalizão configurou-se como um arranjo de poder pragmático: partidos múltiplos, fragmentados, sem maioria absoluta, exigiam do Executivo a construção de alianças para governar. Parte desse pacto informal incluía o apoio às indicações presidenciais para cargos de alta relevância, inclusive para o STF. Assim, o Senado sempre fez parte do “jogo da indicação”. A chamada “aprovação automática” dos nomes provenientes do Planalto não revelava submissão absoluta à vontade presidencial, mas a conformação de uma base de apoio sólida e estruturada e negociada. A dinâmica era conhecida, apoio parlamentar em troca de participação em cargos, liberação de emendas, acesso a recursos, centros de poder e influência institucional. Não por acaso, a nomeação de ministros ao Supremo sempre transitou num ambiente de barganha comum ao modelo, no qual o governo negociava com líderes partidários, que, por sua vez, mobilizavam bancadas. Esse mecanismo permitia certa previsibilidade institucional. Havia lealdade coletiva e regras implícitas entre Executivo e Congresso.
O que vemos hoje, com a resistência do Senado à indicação de Messias, é justamente o oposto. A relutância não se explica apenas em termos do perfil técnico ou ideológico do indicado, refere-se a uma mudança estrutural no funcionamento das coalizões. A equivalência entre indicação de ministro e reafirmação da base de apoio perdeu validade. O chamado “pacote de apoio” virou mercadoria esgarçada.
No centro desse processo está uma transformação silenciosa, mas decisiva, a mudança na lógica de distribuição de recursos no Congresso. Com a descentralização de recursos e a autonomia maior dos parlamentares na gestão interna de verbas, o governo perdeu a capacidade de atrair e fidelizar bancadas por meio de controle direto sobre instrumentos de recompensa. O resultado é um Congresso que se comporta mais como um “balcão de negócios” – disperso, individualista, difícil de se articular por meio de lideranças partidárias. A centralidade dos líderes de bancada enfraqueceu, o Executivo não dispõe mais de instrumentos eficazes para garantir quóruns de apoio confiáveis e o que resta são negociações “homem a homem”, voto a voto, indicado a indicado. É nesse ambiente que a nomeação de Messias ao STF se choca com resistências incomuns.
Vale explicar como funciona o rito institucional. O presidente indica o nome, este é sabatinado pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado e, se aprovado, vai a votação no plenário, onde precisa de maioria absoluta, ao menos 41 dos 81 senadores. Messias, atual ministro da Advocacia-Geral da União (AGU) e figura de confiança do presidente Lula, preenche os requisitos constitucionais, mas, segundo relatos dos bastidores, seu nome sofre resistência, inclusive na base governista. O descompasso entre prerrogativas formais e dinâmica real revela algo essencial, o enfraquecimento da capacidade do Executivo de governar por meio de coalizões estruturadas. Indicar um ministro ao Supremo tornou-se um leilão de votos, inacessível para quem não possui capital individual (prestígio, influência pessoal ou apoio externo).
Em suma, a dificuldade de indicação de Messias é sobre a crise do arranjo institucional que tornava possível aliar governabilidade com institucionalidade, técnica e legitimidade. É explícita a degeneração do presidencialismo de coalizão, com suas trocas estruturadas sendo substituídas por negociações episódicas, voláteis, instáveis. E isso representa um problema maior do que o conflito em torno de um nome para o STF. Representa a falência de uma lógica de governabilidade e o risco de que, nas próximas sabatinas, o impulso pessoal ou eleitoral se sobreponha à construção de consensos duradouros.
O Brasil, assim, perde. Perde governabilidade, perde previsibilidade institucional e perde a chance de repensar, de forma consistente, o próprio arranjo de separação de poderes. A eventual rejeição de Messias seria um marco simbólico da desintegração da lógica de coalizão. E isso deveria acender um alerta sobre o que resta de institucionalidade em nosso regime de governo. Pois, no fim das contas, a crise de uma indicação é o espelho de uma crise de modelo político. •
Publicado na edição n° 1391 de CartaCapital, em 10 de dezembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Quem teme a sabatina?’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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