Leonam Lucas Nogueira Cunha

advogado, mestre em Estudos de Gênero, professor e doutorando em Estado de Direito pela Universidade de Salamanca. É também poeta e tradutor.

Opinião

Quem tem medo da linguagem inclusiva?

Recordo um cartaz que percorreu as ruas de Madri na enorme manifestação feminista do ano de 2018: ‘os exageros de ontem são os direitos de hoje’

Créditos: Istock Photos
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Há alguns meses, durante a última campanha presidencial, assisti ao vídeo de um encontro do Partido dos Trabalhadores em que uma liderança terminou o seu discurso dizendo: “Obrigada a todos, todas e todes”. Imediatamente, houve uma chuva de comentários de ridicularização que iam desde gargalhadas até repúdio, apesar da plateia estar composta por pessoas que, em princípio, brindavam apoio político a ela. Os comentários deixaram de ser de apoio e concordância para ser de rejeição e desconfiança pelo mero uso da palavra “todes”.

Cada vez mais, vejo se plasmar nas redes sociais, e se configurar em outros espaços de diálogo informais, uma espécie de ódio à ideia da “linguagem inclusiva”. Com “linguagem inclusiva” ou “linguagem neutra”, refiro-me à proposta de disseminar no corpo das palavras uma noção que questione os padrões de gênero e as invisibilizações determinadas por ele.

Explico: o masculino genérico da língua portuguesa se aplica a tudo. Por exemplo, “os cadernos e as canetas são brancos”. Neste caso, o gênero masculino gramatical se sobrepõe ao feminino para, em definitiva, englobá-lo também. No entanto, não só os objetos entram nessa lógica da linguagem, segundo a norma culta explicada pelos sujeitos que se dedicam ao estudo da gramática. É o caso de: “Todos os presentes estão emocionados”. Pode-se deduzir que “os presentes” são só homens, mesmo que estejam presentes homens e mulheres. É assim que a gramática infecta a nossa forma de ver o mundo.

O aprofundamento das discussões sobre gênero, identidade e sexualidade levou a um questionamento sério do uso da linguagem. Por uma questão aparentemente muito simples: é através da linguagem, e a partir dela, que vemos, conhecemos, apreendemos e compreendemos o mundo ao redor. Trata-se de um argumento conhecido, que se usava para elucidar, por exemplo, o quão difícil é explicar para uma pessoa que não fala português o que é o sentimento de “saudade”. Justamente por ser de tradução complicada, já que contempla não só uma sensação de tristeza, mas uma sensação mista, complexa, difusa. Pode ser um exemplo trivial; mas é partindo também dessa ideia, e da ampliação dela, que as discussões sobre gênero e linguagem vão se construindo. É ampliando essa proposta que poderemos pensar: como explicar o que significa ser “homem”? E aí vemos as diversas nuances: os significados vão variar de acordo com a época histórica, com o contexto geográfico, cultural e social, e com o ponto de vista moral e subjetivo do sujeito. Ou seja, a linguagem nos limita, e é exatamente por isso que se transforma.

Outro exemplo: segundo o dicionário Priberam, a palavra inglesa “smartphone” se reconhece na língua portuguesa. Antes de conhecer-se a ideia de “smartphone”, não havia a necessidade de enunciá-la. E, se fosse possível, seria muito complicado explicar a uma pessoa do século XIX o que é esse objeto. Essa pessoa, a princípio, certamente não entenderia, mas, vendo-o e compreendendo as suas funções, incorporaria ao seu vocabulário a palavra. E de repente o “smartphone” passa a existir no mundo dela. A ideia passa a existir porque a linguagem se engrandece.

Alguns puristas tratam a língua portuguesa como um ente em eterno estado de dormência. Podem chegar a dizer: “não precisamos da palavra smartphone porque podemos dizer celular inteligente”. Ou exagerariam ainda mais o argumento: “smartphone não existe”. Soa mais estranho, não é?
Mas é isso justamente que argumentam algumas pessoas em relação à linguagem neutra: “Todes não existe. É todos, e ponto final”. Parece que lhes dá medo esfumar os limites da linguagem. Segundo essa gente, o português talvez nunca deveria haver deixado de ser latim, por se tratar de uma evolução desta, de uma transformação, de um processo de ruptura e contágio a partir do conhecimento de novas realidades, culturas e necessidades.

O português que se fala no Brasil não seria o mesmo não fossem as influências de outras línguas e outras culturas. E certamente não teria a mesma riqueza e a força cultural que tem hoje. A ortografia mudou, palavras de origem estrangeira se incorporaram, novos objetos e mundos se deram a conhecer. E a pergunta fundamental é: existe alguma palavra que, realmente, não tenha vindo de outra que, por sua vez, não respeita nenhum limite geográfico-administrativo do território de um país? Ora, nem mesmo os limites geográficos-administrativos de um país são imutáveis.
Trago esses questionamentos para que se olhe com mais atenção a proposta da linguagem inclusiva. Até pouco tempo atrás, soaria estranhíssimo dizer “todos e todas que estão aqui nesta sala…”. Contudo, esse uso cada vez mais se estende porque os feminismos nos fizeram ver que, se não enunciarmos, com as palavras, a existência das mulheres, elas ficam escondidas, ocultas, invisibilizadas. Como se não existissem. A invenção do “todes” (adianto que não há palavra que não tenha sido inventada) serviria para marcar que existem pessoas que não se identificam nem como homens nem como mulheres. E com isso abrimos as perspectivas do nosso mundo por meio da linguagem.

No entanto, é preciso lembrar que a linguagem inclusiva não se resume à linguagem neutra. A linguagem neutra seria aquela que não tem marcação de gênero nos vocábulos aplicados aos seres humanos, esta grande odiada atualmente: “médiques”, “advogades”, “bonite”, “maravilhose”. A substituição do “o” e do “a” pelo “e” é uma das soluções possíveis. Entretanto, vejam que a linguagem inclusiva contempla outras propostas: por exemplo, se observarem, neste texto, usei palavras que não marcam gênero: “pessoas”, “sujeitos”, “gente”. Só marquei o gênero quando foi realmente preciso. Para aquelas pessoas que defendem uma boa conjugação entre a “norma culta” e a “inclusão na linguagem”, esta é uma boa saída: “corpo docente” em vez de “professores e professoras”; “alunado” em vez de “alunos, alunas e alunes”; “todo mundo”, o “público”, a “plateia”, “pessoal”, em vez de “todos, todas e todes”.

Pode ser que isso lhes pareça bobagem pós-moderna. Pessoalmente, quando começo a cair nessa espécie de conclusão, lembro-me de uma frase de Audre Lorde: “Da minha participação em todos esses grupos [como mulher, como negra, como lésbica, como poeta, como mãe], aprendi que a opressão e a intolerância em relação à diferença vêm em todos os tamanhos e sexos e cores e sexualidades; e entre aqueles de nós que compartilham dos objetivos de liberação e um futuro viável para nossas crianças, não pode haver hierarquias de opressão”.

Recordo, por fim, um cartaz que percorreu as ruas de Madri na enorme manifestação feminista do ano de 2018: “os exageros de ontem são os direitos de hoje”.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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