

Opinião
Quem é o fora da lei?
No campo, os verdadeiros criminosos são os “donos” de terras griladas, e não os agricultores do MST que desejam cultivá-las


“Contra a intolerância dos ricos, a intransigência dos pobres.” Não, caro leitor, a frase acima não é de Che Guevara nem de Fidel Castro. O autor é o grande Florestan Fernandes, sociólogo, antropólogo, professor e, o mais importante, estudioso do racismo. A citação está gravada na pedra fundamental da escola nacional do MST, no município paulista de Guararema, batizada com o nome de Florestan, um dos intelectuais mais influentes do século XX.
Foi na inauguração da Escola Nacional Florestan Fernandes, em 2006, que vim a conhecer de perto o movimento. Ali se cultivam alimentos orgânicos, consumidos pelos alunos e visitantes da escola e também vendidos no Armazém do Campo, no bairro paulistano da Barra Funda. Os camponeses filiados ao MST não se beneficiam apenas de um pedaço de terra, dentre os milhares de hectares de terras devolutas no Brasil. Para quem não conhece o conceito, as terras devolutas são áreas públicas férteis e não cultivadas, que quase sempre viram alvo de grileiros. Esses criminosos buscam “legalizar” a posse irregular com documentação falsa. Aprendi o significado do termo sem procurar, quando li na adolescência a trilogia O País do Carnaval (1931), Cacau (1933) e Suor (1934), de Jorge Amado.
De acordo com o Estatuto da Terra, todo proprietário de uma gleba rural é (ou deveria ser) obrigado a cumprir com as seguintes responsabilidades: 1. Favorecer o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias. 2. Manter níveis satisfatórios de produtividade. 3. Assegurar a conservação dos recursos naturais. 4. Observar as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivem. Quem cumpre essas regras? Provavelmente, muito poucos, sobretudo entre aqueles que usam a posse da terra com a finalidade de especulação. São estes os verdadeiros fora da lei, não os sem-terra que ocupam glebas improdutivas para cultivar.
Voltemos ao MST. Escrevi acima que os camponeses que se filiam ao MST não se beneficiam apenas da conquista de um lote no qual possam viver e plantar. Beneficiam-se, ainda, de todas as medidas emancipatórias compartilhadas entre os integrantes do movimento. A Escola Nacional Florestan Fernandes, por exemplo, cumpre uma função que deveria ser do Estado, a de alfabetizar aqueles que não tiveram a oportunidade de ir à escola na idade certa. O segundo propósito mais importante é o de inserir, no campo da cultura e dos debates relevantes, todas as famílias que lutam, dentro da legalidade, por um pedaço de terra. Alfabetização é emancipação.
No período em que fui semanalmente à Escola Nacional para oferecer escuta psicanalítica, percebi o quanto o acolhimento oferecido pelo MST era fundamental para a cura dos transtornos que acometiam os camponeses. O trabalho de análise possibilitou que eles entrassem em contato com vivências traumáticas, fantasias persecutórias ou mesmo pequenos conflitos vividos no tempo atual, mas que os angustiavam. A rapidez com que elaboravam seus problemas e se declaravam “curados” certamente tinha a ver com o fato de viverem em uma coletividade que os amparava nos momentos difíceis.
Outra evidência do forte sentimento de pertencimento à coletividade é o modo como ninguém tenta levar vantagem sobre os companheiros. Na longa fila do almoço, de vez em quando alguém resolvia conversar com um amigo na dianteira. Pensei que era pretexto para furar a fila, até perceber que cada um que deixava seu lugar para falar com alguém lá na frente dizia, bem alto: “Último!” Depois da conversa, recomeçava do zero, no fim da fila.
Presenciei a mesma consideração pelo coletivo em uma viagem a Cuba, em 2005, por ocasião da Feira Internacional do Livro de Havana. Ninguém furava fila, mesmo que deixasse seu lugar para falar com alguém lá na frente. É bonito pensar que parte dos dispositivos de convivência solidária encampados pelos militantes do MST advém do socialismo cubano. E, por falar nisso, ao desembarcar no aeroporto de Havana, os turistas se deparavam com um grande outdoor, no qual se lia: “Neste momento, no mundo, milhões de crianças dormem nas ruas. Nenhuma delas é cubana”.
No Brasil, um outdoor semelhante, com apego à verdade factual, teria de reconhecer que milhões de crianças brasileiras passam fome por aqui. Nenhuma delas, arrisco dizer, é filha de integrantes do MST. Tenho certeza de que o querido professor Florestan Fernandes, citado na abertura desta coluna, não se ofenderia de ser colocado aqui, no final do texto, na insólita companhia de um roqueiro: Raul Seixas. Sonho que se sonha só/ É só um sonho que se sonha só/ Mas sonho que se sonha junto é realidade. •
Publicado na edição n° 1277 de CartaCapital, em 20 de setembro de 2023.
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